26.11.18

Ricardo - capítulos VIII e IX


VIII

            Ricardo frequentava uma escola secundária e não reprovara um só ano. Causava-me alguma confusão que consumisse drogas duras, sabia-o agora, e que, simultaneamente, mantivesse um percurso escolar regular. Era verdade que as notas tinham decaído um pouco face ao que já tinham sido, mas eu atribuía o facto a alguma falta de trabalho – e quantas vezes não o massacrei à conta  disso! – somada à maior complexidade das matérias. Verdade, verdade, é que nunca me apresentara um resultado negativo. Como poderia eu ter desconfiado? Ainda para mais, o rapaz disfarçava tão bem como os melhores atores! Parecia-me cansado… Uma vez mais, no entanto, eu atribuíra o facto, se não ao estudo aturadíssimo, pelo menos à dificuldade das matérias. É verdade que saía à noite e regressava, frequentemente, quando eu já dormia. Mas, tinha eu considerado, era já normal aos dezassete anos. Bom, não tinha achado fabuloso, mas tinha-me adaptado. Temos que saber deixar os filhos crescer. Nunca nada me causara desconfiança. Talvez tivesse confiado demasiadamente… Talvez andasse tão ocupado com a minha própria vida profissional que não chegara a dar por nada… Em suma, talvez andasse demasiado distraído! Essas ponderações causaram-me um enorme sentimento de culpa. Que poderia eu ter feito para evitar o desfecho? Talvez tudo. Talvez nada. Talvez alguma coisa. O suficiente? A verdade é que não havia, agora, nada a fazer. Não, nada a fazer para evitar o que já tinha acontecido. Não era isso, certamente, que me diminuía o sentimento de culpa que então me assolava.
            Sabia que havia problemas com drogas leves, as chamadas drogas leves, aquelas que se consideram recreativas, que parecem não passar de uma mera fase cada vez mais socialmente aceite, em todas as escolas. Com certeza que a escola de Ricardo não constituiria a exceção à regra. Nunca achei, no entanto, que o meu filho se deixasse envolver nesses meandros. Não digo que não tenha alguma vez imaginado que já experimentara algo, é a idade das experiências, mas nunca dei a isso a importância que, no fim de contas, deveria ter dado. Culpa minha, ainda que não devesse arcar com as culpas do mundo. Mas o filho tinha sido meu, não do mundo. Lançado ao mundo, sim… Como todos os que nascem. Caramba, a culpa tinha sido minha! Como é possível abstrairmo-nos tanto do que temos debaixo do nosso próprio teto? Será que só quando nos cai em cima percebemos que houve algo de errado na construção? Soltei o maior suspiro da minha vida.

            Dirigi-me precisamente à escola que Ricardo frequentara. Por um lado, era uma tarefa dolorosa. Por outro, precisava de observar. Tentar compreender
algo mais.
            Tão discretamente quanto me foi possível, porque, francamente, não sei
até que ponto conseguimos tal nível de discrição e eu sentia os olhos dos professores e alunos que saíam durante os intervalos para um cigarro, assim como dos funcionários a espreitar pelas frinchas e pelos gradeamentos mesmo não o fazendo. Quem sabia se a própria Direção não se apercebia de algo estranho? Para não mencionar as passagens rotineiras da Escola Segura. Tornava-se complicado. Na minha cabeça, o mundo inteiro observava-me. Fora de mim, creio que me ignoravam. Mas era eu quem não podia deixar de observar. Assim decorreram vários dias, a diferentes horas, absurda estratégia que concebi para não dar nas vistas.
            A escola localizava-se junto a um descampado, numa rua sem casas. Ao fundo, junto a um grupo de moradias isoladas, havia um pequeno beco que não sabia onde desembocava. O que, por algum motivo, mais me chamou a atenção, sobrepondo-se aos disparates normais e próprios daquelas idades, aos empurrões, aos chorrilhos de calão, à gíria jovem, aos gritos contínuos que se ouviam, como se fossem todos surdos ou só conseguissem exprimir-se em gritarias, foi a forma como grupos de jovens se enfiavam regularmente beco dentro e de lá regressavam com um ar estranhamente bem-disposto. Pelo menos, assim me pareceu. Assisti à romaria vezes sem conta. Que diabo é que iam fazer ao fundo daquele beco? Provavelmente nada de especial, mas eu tinha que saber…

            Vi um grupo de rapazes e raparigas que seguiram em direção ao beco. Esfreguei os olhos, quase que raciocinei e simplesmente tranquei o carro e segui-os, discretamente, à distância.
            Encostei-me a uma esquina, de modo a que ninguém desse por mim. Observei pelo canto do olho. O beco ia dar a uma espécie de pequeno campo ou clareira. Vi, sentado numa pedra, um jovem, quase tão jovem como eles. Era magro e esboçou um sorriso falso quando viu o grupo e se ergueu lentamente. Trocaram algumas palavras excessivamente indistintas para que as pudesse compreender. Um dos jovens passou-lhe uma nota e recebeu algo em troca. Todos riam, excitados com a prevaricação. Só o rapaz se voltara a sentar e ria menos. Como eu, parecia observar com algum cansaço daquilo que deveria ser uma repetição muito repetida. Ó mano!..., qualquer coisa, não consegui entender o resto, gritou-lhe um rapaz. E ele sorriu de volta. Não tardou, estavam a enrolar um charro, era inconfundível. Todos eles excitados. Contive um suspiro e afastei-me rapidamente, antes que alguém pudesse descortinar-me.
            Dei um par de voltas, para cima e para baixo, numa rua transversal, e vi-os regressar e desaparecer muito alegremente para o interior do portão da escola.
            Apressei-me de volta ao beco, na esperança de ainda lá encontrar o dealerzito. Pelo caminho, atabalhoadamente, apanhei um pedaço de madeira forte do chão. Intuitivamente, sabia o que tinha que fazer. Estuguei o passo. O rapaz erguera-se e preparava-se para desaparecer pelo lado oposto do pequeno descampado. Pareceu-me demasiadamente calmo e indiferente e, de alguma forma, isso enfureceu-me.
            Impensadamente, agarrei-o pela parte de trás do colarinho do blusão que vestia e derrubei-o com violência. Aterrou no chão como um saco morto. Deve ter-se sentido extremamente surpreendido. Quando dei por mim, ele rebolava-se no chão de terra sob o impulso furioso das pauladas que eu lhe infligia no rosto, na cabeça, no peito, nas costas, nas pernas…
            - Ei! – exclamava – que é que me quer?
            Eu continuava a malhar, quase cegamente, e no entanto tão certeiro, até que o rapaz, rasgado e ensanguentado, se calou, como que aceitando tacitamente aquele destino. Pausei por segundos e quase tive pena dele. Desferi-lhe uma última paulada em cheio no rosto e lancei o toco de madeira para uns arbustos. O rapaz quase não se movia, provavelmente ainda à espera do golpe seguinte. Levei as mãos à cintura e inspirei fundo.
            - Não chegas a ser nada! Não vales a pena! – rosnei com toda a raiva que a minha vida continha.
            Logo de seguida, voltei costas, regressei ao automóvel e arranquei como se nada tivesse sucedido. Só me ocorriam, em imagens intermitentes, visões da cena que presenciara, à noite, junto ao semáforo vermelho. Na minha mente, a criança do banco traseiro ainda não parara de chorar nem de arranhar inutilmente o vidro…
























IX

            Pela primeira vez, ganhei coragem suficiente para percorrer as fotos e pequenos filmes de Ricardo que fora acumulando no computador. Sabia que não passavam de imagens, bits e bytes, mas guardavam algo que efetivamente existira em momentos quebrados entre si. Mesmo a memória, talvez mais importante do que qualquer gravação de qualquer tipo, liquefaz-se e engana-nos com a passagem do tempo. Era, em todo o caso, o que de mais palpável dele me restava…
            E o que dele me restava revelou-se uma estranha mistura da mais profunda dor do universo com uma espécie de indiferença face ao que não podemos alterar e que, por isso mesmo, por se tratar de algum mecanismo de defesa ou mesmo de indiferença, e se era indiferença não podia ser pior, inundava a casa inteira daquela dor que, estoicamente e de modo quase masoquista, desenrolei até ao fim.
            O Ricardo ainda pequeno, com um hambúrguer sobre uma mesa do McDonald’s, embebendo batatas fritas num daqueles molhos pouco saudáveis que eles vendem. O Ricardo sorrindo aquele sorriso totalmente honesto e aberto que só as crianças conhecem, diante de um pinheiro de Natal que eu montara e enfeitara só para ele, já que, para mim e só para mim, o Natal passara a ser mais indiferente do que um gato morto na berma da estrada. O Ricardo, numa pose heroica, com o braço sobre o ombro de um amiguinho da escola. O Ricardo, já com os seus dez anos, sentado à mesa de Joana, contrariado com a refeição que lhe desagradava. O Ricardo, aos catorze, deixando-me tirar-lhe uma foto por especial favor, numa fase em que decidira não gostar de fotografias.
            Pausei, fui buscar a garrafa de whisky, servi-me, bebi de um trago e servi-me de novo.
            O pequeno Ricardo na praia, em pose de homem musculoso. O Ricardo equilibrando-se na bicicleta que lhe oferecera pelo seu nono aniversário. O Ricardo jogando à bola no pátio com os amiguinhos. O Ricardo, rodeado de familiares e amigos, soprando as velas no seu décimo-quinto aniversário. A partir daí, as fotos deixaram de existir. Talvez por culpa minha, por ter deixado de me preocupar em guardar o tempo em pequenos retângulos coloridos, erradamente convencido de que o tempo era coisa duradoura.
            Engoli o que restava de whisky no fundo do copo e encerrei o computador. Uma lágrima teimosa, a contragosto, deslizou-me pelo rosto. Limpei-a com a palma da mão aberta, respirei tão fundo quanto pude e subi para me deitar.
            Nessa noite, mesmo antes de adormecer, arrisquei e pedi a Deus que me permitisse contactar com Ricardo em sonhos…
            - Ricardo, porquê?
            - Por nada.
            - Por nada, como?
            - Por nada mesmo. Desculpa, pai. Quis saber como era.
            O facto é que, embora consciente de que todos sonhamos quando dormimos e que não há quem não sonhe, acordei, uma vez mais, com a sensação de uma noite em branco. Nem Deus me valia. Talvez não existisse. Se não existisse, também não podia culpá-lo de nada. Que vazio…

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