X
A morte apanha-nos a todos. E
apanha-nos sempre desprevenidos. Mesmo nos casos em que um médico, protegido
pela sua bata branca, nos diz “Lamento, mas tem uma semana de vida”. Deve ser o
tal instinto de sobrevivência de que sempre falamos. Os últimos instantes devem
ser sempre atrozes, mesmo para os mais bem preparados. A surpresa total e
absoluta deve ser sempre o fator-chave para cada um. Tinha-me desligado de
tanta gente durante a minha vida que não fazia ideia se estavam vivos ou
mortos, saudáveis ou doentes, ricos ou miseráveis. Por vezes, vinham-me à ideia
em recordações torcidas, mas via-os sempre como os vira no tempo em que os
conhecera. Era, na verdade, um vazio, o corte, como se todos tivessem morrido
ou passado a viver em dimensões distantes.
O telemóvel fez soar por instantes
aquele toque inconfundível da secção rítmica dos Soul Coughing, também eles relativamente mortos há anos. “Uh zoom
zip uh wake up, uh zoom zip…” Atendi o número desconhecido. Era um velho amigo,
ainda vivo, pelos vistos, que me anunciava:
- O pai do Antero morreu e ele
pediu-me para te avisar.
- O pai do Antero? – interroguei, eu
mesmo surpreendido – Que idade é que tinha?
O Lucas passou a idade à frente e
explicou:
- Morreu de cancro dos pulmões. Tinha
fumado a vida inteira. – curiosamente, após dez anos inteiros de abstinência,
eu mesmo dera comigo de regresso às minhas cigarrilhas favoritas - Acho que
passou uns últimos tempos muito difíceis. Imaginas. Difícil para todos. Mas o
sofrimento acabou, pelo menos isso…
- Sim…
- O funeral vai ser amanhã às duas
da tarde e o Antero iria apreciar muito a tua presença.
- Hmm… - procurei um motivo qualquer
de impedimento mas, assim de repente, não o encontrei – Sim. Claro. E tu, que é
feito de ti?
- Pá, comigo está tudo bem. Depois
falamos. Amanhã, às duas, ok? Ainda tenho que fazer mais alguns contactos.
- Está bem. Claro, contem comigo. Por
favor, dá-lhe os meus sentimentos se, entretanto, falares com ele.
No dia seguinte, às duas, chovia por
todo o inverno interminável. Os enormes portões do cemitério, com manchas avermelhadas
da passagem do tempo no ferro forjado, encontravam-se abertos de par em par
para deixar passar o cortejo, um bando de corvos nigérrimos, de cabeça tombada.
O vento indignado parecia pretender derrubar todas as árvores que ladeavam os
caminhos, as campas alagadas, as poças exageradas que, pelo caminho de terra,
nos salpicavam e enlameavam sem piedade. Caminhávamos lentamente, num silêncio
fundo, intercalado de sussurros. Na dianteira, quatro gatos-pingados carregavam
o caixão que a atmosfera geral escurecia mais. Fitei Antero, a quem já dera os
meus sentimentos. Parecia-me visivelmente abatido. Um choro baixo e desesperado
da viúva, de braço dado com o filho, ritmava, ocasionalmente, a marcha. E a
tempestade não dava sinais de abrandar.
No final, dirigimo-nos, um grupo, a
um centro comercial próximo. Meia dúzia de nós. Que amigos tínhamos sido em
tempos! Pela atmosfera geral, era como se tivesse sido no dia anterior.
Pessoalmente, no entanto, sentia-me deslocado, talvez tivesse sido eu que me
afastara inexoravelmente… A mera mudança de local e a chuvada presa no exterior
despertavam sorrisos e piadas que me apercebi recordar ainda com nitidez. Tinha
passado tanto tempo a fugir… Talvez… Dedicara-me, anos a fio, a Ricardo e, isso
assustava-me, muito fundamentalmente ao esconderijo da construção de uma
carreira. Pareceu-me que o mundo passara ao lado da minha bolha. Principalmente
nos últimos anos desligara-me da corrente. Assustava-me, sim, porque senti que
me tinha, de certa forma, desligado também de Ricardo quando talvez tivesse
sido importante ele ter-me tido mais por perto. Quando era mais novo, éramos confidentes,
os melhores amigos do mundo. Depois, não sei. Achara que era ele que se
afastava e que tinha que lhe dar espaço e, afinal, talvez não tivesse passado
de um terrível erro de julgamento.
- Sentem-se nessa mesa, malta! Quem
quer café?
Regressei ao momento presente. Todos
quisemos. Não sei dos outros, eu já tomara um café logo após o almoço, foi mais
para acompanhar o ritmo geral. Contaram-se histórias em tom leve, daquelas que
não elucidam nada nem ninguém mas servem para nos manter acordados. Um de nós,
o Luís, parecia-me particularmente excitado. Passou a mão por meia dúzia de
pelos na minha garganta, que só barbeava ocasionalmente para que não começassem
a surgir mais fortes e, quem sabe, não surgissem outros ainda até passar a ter
que barbear a garganta toda como um homem-macaco e exclamou:
- Meu, a minha mulher já te tinha
obrigado a cortar essa coisa!
Podia ter-lhe explicado os meus
motivos, mas o que se me escapou foi um sorriso amarelo. Pois…
Parecia-me mesmo muito entusiasmado
para quem voltava de um funeral… De repente, soltou o que, provavelmente, ainda
lhe não saíra da cabeça:
- Pessoal, saímos daqui, vamos no
meu carro até à beira-mar e fumamos um tarolo à maneira. Tenho aqui erva de
primeira!
Obviamente, não se importava
absolutamente nada com o que, nas mesas em redor, alguém pudesse captar. Daí em
diante, foi tarolo para aqui, tarolo para acolá… Confesso que nem conhecia o
termo, tarolo, não creio que fosse do meu tempo. A certa altura, pediu licença,
que tinha que ir à casa de banho. Retirou-se por uns momentos e regressou com o
mesmo ar animado. Sentou-se e recomeçou a falar em irmos embora fumar um tarolo.
A minha vontade era nula, não se tratava de algo que apreciasse particularmente.
Nessa altura, Lucas, que o olhava de frente, dirigiu-se-lhe discretamente:
- Pá, trazes um bocado de pó branco
agarrado à narina…
Luís limpou rapidamente o nariz com
as costas da mão, inspirou ruidosamente e, como se de nada se tratasse, retomou
a história de irmos à beira-mar, no carro dele, fumar um tarolo. Nunca tinha
visto ninguém tão transbordante de autoconfiança… Ou sequer com tanta vontade
de fumar um “tarolo”.
À saída, de regresso à tempestade
que não abrandara, como não abrandava a pressão que Luís exercia sobre o grupo,
desculpei-me com um trabalho que deixara a meio e afastei-me com a promessa
vaga de nos reencontrarmos todos em breve. Os outros seguiram Luís até ao carro
e suponho que tenham ido à beira-mar fumar o tal tarolo. Ao vê-los
afastarem-se, o dia pareceu-me ainda mais sombrio. A atitude maníaca de Luís
remoía-me as entranhas. Só eu estava plenamente consciente do facto e, muito
provavelmente, solitário nesse aspeto.
De regresso ao vazio fundo do lar
que deixara fundamentalmente de o ser, só não estava certo há quanto tempo
exatamente, liguei o computador e, teimosamente, forcei o teclado a repetir: Importing guns from the USA to Portugal,
Buying guns in the USA, Buying guns in Europe… Era frustrante e
já o deveria saber. Um aparente beco sem saída. Saquei de uma cigarrilha,
acendia-a, inspirei o fumo azul, lancei a cabeça para trás e suspirei. Como
diabo é que se arranjavam armas nesta terra?
Recomecei… Não se desiste assim.
Modifiquei os termos da pesquisa. Não tardou, fiquei pelo menos, a saber que a net disponibilizava toda uma gama de
tutoriais sobre como construir um silenciador. Carregados de avisos sobre a
ilegalidade da coisa, mas o facto é que ninguém tinha apagado os filmes ou as
páginas passo a passo. Era como começar uma casa pelo telhado, mas vá… Como
tirar medidas, que materiais arranjar, como assinalar locais para buracos que
qualquer Black & Decker faria,
criar uma cobertura, uma espécie de tampa, tudo. Melhor que nada. Eu
conseguiria fazê-lo. E armas? Uma pistola suficientemente pequena para caber discretamente
num bolso e, no entanto, eficaz? Munições? Pesquisei no fundo da memória dos
meus tempos de tropa… Era possível que o passado me guardasse respostas para o
presente. Salvo, claro está, onde e como arranjar o que pretendia. Importar
estava fora de questão. E as lojas de armas, tanto quanto sabia, não vendiam
nada de sequer remotamente adequado. Ainda por cima, já tinha percebido como
seria difícil justificar um pedido de licença de porte de arma. Bom, uma
licença era, na realidade, o que menos se ajustava à missão que, cada vez mais,
sentia precisar de levar a cabo.
Servi-me de um whisky, como já vinha
sendo hábito, sorvi um pequeno gole e, não sei por que golpe de clarividência,
caí em mim. Os silenciadores da net
eram, obviamente, pelos materiais usados, por tudo, extremamente fracos; talvez
por isso estivessem na net. O telhado
sem casa que o sustentasse desabou-me em cima, como não podia deixar de ser.
Aquilo de que andava à procura seria, talvez, uma 6.35, mas recordei-me de uma
conversa que tivera com um amigo ou conhecido de outros tempos, tipo pouco
recomendável ou, pelo menos, dúbio: o que se arranjava no mercado negro eram
armas que, a qualquer momento, por serem transformadas ou meras velharias, nos
poderiam explodir na cara. Para mais e não menos importante, não tinha a mínima
ideia de como comprar o que quer que fosse no mercado negro, onde quer que ele
se situasse. Finalmente, não seria nada boa ideia deixar marcas indeléveis do
que se me insinuava levar a cabo e, quase certamente, terminar os meus dias
potencialmente úteis numa cela, à mistura com um bando de tipos estranhos que
me forçassem a transformar-me numa tentativa de sobreviver. Levei a mão à
cabeça e despenteei-me inadvertidamente num gesto rápido.
Estava de volta à estaca zero.
Quando me preparava para mais uma
noite de sono simultaneamente branco e inquieto, algo me impeliu a, no caminho,
regressar ao quarto que fora, era e sempre seria de Ricardo. Liguei o
interruptor, entrei, olhei em volta incerto do que procurava e comecei a remexer
nas gavetas que sempre respeitara até então. Estava tentado a retirar-me.
Talvez esperasse encontrar restos da droga que pusera fim aos sonhos que o meu
filho pudesse, algum dia, ter acalentado. Se aplicasse uma dose excessiva a mim
mesmo, seria a forma mais fácil de pôr um ponto final no meu tormento,
juntando-me a quem amara para a eternidade. Disparate perfeito, claro. Sabia
que não o faria. Faltavam-me a coragem e a lógica em simultâneo. Por todo o
lado, entretanto, não encontrei mais do que banalidades que me magoavam pelo
simples facto de existirem ou, de alguma forma, já terem existido. Roupas.
Fotos. CDs. Livros. Revistas. Tudo o que se poderia encontrar em qualquer
quarto de qualquer jovem. Subitamente, um objeto metálico, no fundo da última
gaveta que me preparava para fechar, captou-me a atenção. Afastei todos os
objetos que lhe barravam o caminho e agarrei-o, primeiramente hesitante e, de
seguida, mais fortemente… Era aquilo a que, normalmente, chamamos um taser. Onde diabo é que ele arranjara
aquilo e em nome de que deus? Durante largos momentos, fitei-o, equilibrado sobre
a minha mão em concha. Instintivamente, pressionei um botão e vi nascer uma espécie
de faísca. Larguei o botão e repeti o gesto um par de vezes.
Uma ideia começou a nascer em mim…
XI
Andei uns tempos a remoer na ideia…
Por fim, certo dia, dei comigo a
combinar um jantar com Lucas, tal como nos velhos tempos, para os reviver um
pouco. Na verdade, não. Pretendia obter informações acerca de Luís e, como não o tinha na minha lista de contactos, achei que Lucas poderia servir bem
como informador desapercebido. O jantar correu bem. Comemos bem, bebemos
melhor, conversámos como se nos encontrássemos todas as semanas e, no final,
quando nos despedimos, já tinha o que pretendia, para além da confirmação de
que Luís estava com um problema de coca e a certificação de que a coisa era
preocupante e não dava sinais de parar.
- Luís?
- Quem fala?
- É o Miguel, meu. O Miguel Andrade.
Lembras-te de mim ou já me esqueceste?
- Oh, Miguel! – Luís passou instantaneamente
do tom formal para o entusiasmo excessivo que o caracterizava – Então, que
contas? Queres marcar um café, qualquer coisa? – Facilitava-me a vida. Como
calculara, não precisara de dar muitas voltas à conversa nem de nenhum tipo de
explicação relativamente elaborada para marcar um encontro. Ele era assim, o
perfeito bom rapaz, infelizmente sempre pronto a fazer algum tipo de disparate
por excesso de otimismo. No entanto, acabava sempre por aterrar de pé, como se
alguma fada madrinha lhe tivesse concedido o dom da boa fortuna nos tempos mais
remotos da sua existência. Pessoalmente, não estava tão certo de que a sorte
pudesse durar eternamente, era naturalmente mais pessimista, ou realista, embora
nunca saibamos exatamente onde começa uma e termina a outra coisa, já que só Deus,
os deuses, o acaso ou as fadas madrinhas detêm o segredo desses mistérios. De
certeza que ele não concordaria.
Encontrámo-nos num sábado nublado ao
início da tarde. Tomámos o nosso café. Felizmente, não começou com a conversa
dos tarolos ou o diabo… Caso contrário e para manter o clima, ainda me poderia ter
visto forçado a tirar, pelo menos, um par de passas e o facto é que, para mim,
não para muitos, mas certamente para mim, seria como ser tratado por um acupuncturista
com Parkinson. Bom, gostos não se discutem, mas preferi assim. Conversámos e
conversámos, sobretudo acerca dos velhos tempos, mas não só…
- Meu, sabes que descobri a forma de
ganhar milhões facilmente? – O olhar de Luís fixou-me de modo vibrante,
aguardando uma resposta. Pausei brevemente e fiz-lhe a vontade, forjando
curiosidade:
- Ganhar milhões, hmm? Suponho que
não estejas a falar no euromilhões…
Luís inclinou-se na mesa e
entusiasmou-se:
- Sim, pá, milhões. – exprimia-se muito
rapidamente – O futuro está nos carros elétricos. Sabes muito bem que o
petróleo se vai esgotar. Tenho andado a pensar nisso e tenho cada vez mais a
certeza que se arranjar investidores à altura, posso ganhar quanto quiser a
fabricar carros elétricos. É fácil, na verdade. Contra factos não há evidências
e quem for esperto vai apostar na ideia sem hesitações. Para mais, vamos ser
pioneiros e isso dá-me todas as vantagens!
- Pois. Já ouviste falar dos Teslas?
Luís ignorou-me totalmente e
interrogou:
- Então? Que achas? De certeza que
muitos desses nabos que para aí andam e que se consideram grandes industriais
teriam gostado de ter tido a ideia. Mas as ideias não surgem à toa, é preciso
pensar. – Levou o indicador à têmpora e abriu-se num enorme sorriso.
- Então, achas que fabricar carros
elétricos é a solução, hã? Mas, olha, as baterias são todas fabricadas na
China. Isso não te complica um bocado a vida?
Ponderou não mais que um instante e
concluiu:
- Ó pá, pois é. Se calhar, tenho que
ir fazer um estágio na China para aprender o modus operandi deles e fazer contactos!
Mas adiante, conversa aqui, conversa
ali, não tinha decorrido muito, com mais cautelas do que as que provavelmente
teriam sido necessárias, convencera-o a levar-me consigo numa das suas
aquisições de cocaína. Sem sequer grandes interrogações. Ele encarava aquilo
como uma aventura e não se importava de a partilhar comigo. Concluí, e já
desconfiava, que frequentava o tal bairro, não muito longe de casa da Joana. Não
paguei a conta porque ele me impediu, saímos para a rua e entrámos no seu
automóvel, um Audi rebrilhante no seu cinzento metalizado. Partimos em excesso
de velocidade, como caminhavam em excesso de velocidade os zombies que
circundavam a pé, nas suas gangas desmazeladas e sapatos gastíssimos de tantas
maratonas, a zona para onde nos dirigíamos.
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