3.12.18

Ricardo - capítulos X e XI


X

            A morte apanha-nos a todos. E apanha-nos sempre desprevenidos. Mesmo nos casos em que um médico, protegido pela sua bata branca, nos diz “Lamento, mas tem uma semana de vida”. Deve ser o tal instinto de sobrevivência de que sempre falamos. Os últimos instantes devem ser sempre atrozes, mesmo para os mais bem preparados. A surpresa total e absoluta deve ser sempre o fator-chave para cada um. Tinha-me desligado de tanta gente durante a minha vida que não fazia ideia se estavam vivos ou mortos, saudáveis ou doentes, ricos ou miseráveis. Por vezes, vinham-me à ideia em recordações torcidas, mas via-os sempre como os vira no tempo em que os conhecera. Era, na verdade, um vazio, o corte, como se todos tivessem morrido ou passado a viver em dimensões distantes.
            O telemóvel fez soar por instantes aquele toque inconfundível da secção rítmica dos Soul Coughing, também eles relativamente mortos há anos. “Uh zoom zip uh wake up, uh zoom zip…” Atendi o número desconhecido. Era um velho amigo, ainda vivo, pelos vistos, que me anunciava:
            - O pai do Antero morreu e ele pediu-me para te avisar.
            - O pai do Antero? – interroguei, eu mesmo surpreendido – Que idade é que tinha?
            O Lucas passou a idade à frente e explicou:
            - Morreu de cancro dos pulmões. Tinha fumado a vida inteira. – curiosamente, após dez anos inteiros de abstinência, eu mesmo dera comigo de regresso às minhas cigarrilhas favoritas - Acho que passou uns últimos tempos muito difíceis. Imaginas. Difícil para todos. Mas o sofrimento acabou, pelo menos isso…
            - Sim…
            - O funeral vai ser amanhã às duas da tarde e o Antero iria apreciar muito a tua presença.
            - Hmm… - procurei um motivo qualquer de impedimento mas, assim de repente, não o encontrei – Sim. Claro. E tu, que é feito de ti?
            - Pá, comigo está tudo bem. Depois falamos. Amanhã, às duas, ok? Ainda tenho que fazer mais alguns contactos.
            - Está bem. Claro, contem comigo. Por favor, dá-lhe os meus sentimentos se, entretanto, falares com ele.

            No dia seguinte, às duas, chovia por todo o inverno interminável. Os enormes portões do cemitério, com manchas avermelhadas da passagem do tempo no ferro forjado, encontravam-se abertos de par em par para deixar passar o cortejo, um bando de corvos nigérrimos, de cabeça tombada. O vento indignado parecia pretender derrubar todas as árvores que ladeavam os caminhos, as campas alagadas, as poças exageradas que, pelo caminho de terra, nos salpicavam e enlameavam sem piedade. Caminhávamos lentamente, num silêncio fundo, intercalado de sussurros. Na dianteira, quatro gatos-pingados carregavam o caixão que a atmosfera geral escurecia mais. Fitei Antero, a quem já dera os meus sentimentos. Parecia-me visivelmente abatido. Um choro baixo e desesperado da viúva, de braço dado com o filho, ritmava, ocasionalmente, a marcha. E a tempestade não dava sinais de abrandar.

            No final, dirigimo-nos, um grupo, a um centro comercial próximo. Meia dúzia de nós. Que amigos tínhamos sido em tempos! Pela atmosfera geral, era como se tivesse sido no dia anterior. Pessoalmente, no entanto, sentia-me deslocado, talvez tivesse sido eu que me afastara inexoravelmente… A mera mudança de local e a chuvada presa no exterior despertavam sorrisos e piadas que me apercebi recordar ainda com nitidez. Tinha passado tanto tempo a fugir… Talvez… Dedicara-me, anos a fio, a Ricardo e, isso assustava-me, muito fundamentalmente ao esconderijo da construção de uma carreira. Pareceu-me que o mundo passara ao lado da minha bolha. Principalmente nos últimos anos desligara-me da corrente. Assustava-me, sim, porque senti que me tinha, de certa forma, desligado também de Ricardo quando talvez tivesse sido importante ele ter-me tido mais por perto. Quando era mais novo, éramos confidentes, os melhores amigos do mundo. Depois, não sei. Achara que era ele que se afastava e que tinha que lhe dar espaço e, afinal, talvez não tivesse passado de um terrível erro de julgamento.
            - Sentem-se nessa mesa, malta! Quem quer café?
            Regressei ao momento presente. Todos quisemos. Não sei dos outros, eu já tomara um café logo após o almoço, foi mais para acompanhar o ritmo geral. Contaram-se histórias em tom leve, daquelas que não elucidam nada nem ninguém mas servem para nos manter acordados. Um de nós, o Luís, parecia-me particularmente excitado. Passou a mão por meia dúzia de pelos na minha garganta, que só barbeava ocasionalmente para que não começassem a surgir mais fortes e, quem sabe, não surgissem outros ainda até passar a ter que barbear a garganta toda como um homem-macaco e exclamou:
            - Meu, a minha mulher já te tinha obrigado a cortar essa coisa!
            Podia ter-lhe explicado os meus motivos, mas o que se me escapou foi um sorriso amarelo. Pois…
            Parecia-me mesmo muito entusiasmado para quem voltava de um funeral… De repente, soltou o que, provavelmente, ainda lhe não saíra da cabeça:
            - Pessoal, saímos daqui, vamos no meu carro até à beira-mar e fumamos um tarolo à maneira. Tenho aqui erva de primeira!
            Obviamente, não se importava absolutamente nada com o que, nas mesas em redor, alguém pudesse captar. Daí em diante, foi tarolo para aqui, tarolo para acolá… Confesso que nem conhecia o termo, tarolo, não creio que fosse do meu tempo. A certa altura, pediu licença, que tinha que ir à casa de banho. Retirou-se por uns momentos e regressou com o mesmo ar animado. Sentou-se e recomeçou a falar em irmos embora fumar um tarolo. A minha vontade era nula, não se tratava de algo que apreciasse particularmente. Nessa altura, Lucas, que o olhava de frente, dirigiu-se-lhe discretamente:
            - Pá, trazes um bocado de pó branco agarrado à narina…
            Luís limpou rapidamente o nariz com as costas da mão, inspirou ruidosamente e, como se de nada se tratasse, retomou a história de irmos à beira-mar, no carro dele, fumar um tarolo. Nunca tinha visto ninguém tão transbordante de autoconfiança… Ou sequer com tanta vontade de fumar um “tarolo”.
            À saída, de regresso à tempestade que não abrandara, como não abrandava a pressão que Luís exercia sobre o grupo, desculpei-me com um trabalho que deixara a meio e afastei-me com a promessa vaga de nos reencontrarmos todos em breve. Os outros seguiram Luís até ao carro e suponho que tenham ido à beira-mar fumar o tal tarolo. Ao vê-los afastarem-se, o dia pareceu-me ainda mais sombrio. A atitude maníaca de Luís remoía-me as entranhas. Só eu estava plenamente consciente do facto e, muito provavelmente, solitário nesse aspeto.

            De regresso ao vazio fundo do lar que deixara fundamentalmente de o ser, só não estava certo há quanto tempo exatamente, liguei o computador e, teimosamente, forcei o teclado a repetir: Importing guns from the USA to Portugal, Buying guns in the USA, Buying guns in Europe… Era frustrante e já o deveria saber. Um aparente beco sem saída. Saquei de uma cigarrilha, acendia-a, inspirei o fumo azul, lancei a cabeça para trás e suspirei. Como diabo é que se arranjavam armas nesta terra?
            Recomecei… Não se desiste assim. Modifiquei os termos da pesquisa. Não tardou, fiquei pelo menos, a saber que a net disponibilizava toda uma gama de tutoriais sobre como construir um silenciador. Carregados de avisos sobre a ilegalidade da coisa, mas o facto é que ninguém tinha apagado os filmes ou as páginas passo a passo. Era como começar uma casa pelo telhado, mas vá… Como tirar medidas, que materiais arranjar, como assinalar locais para buracos que qualquer Black & Decker faria, criar uma cobertura, uma espécie de tampa, tudo. Melhor que nada. Eu conseguiria fazê-lo. E armas? Uma pistola suficientemente pequena para caber discretamente num bolso e, no entanto, eficaz? Munições? Pesquisei no fundo da memória dos meus tempos de tropa… Era possível que o passado me guardasse respostas para o presente. Salvo, claro está, onde e como arranjar o que pretendia. Importar estava fora de questão. E as lojas de armas, tanto quanto sabia, não vendiam nada de sequer remotamente adequado. Ainda por cima, já tinha percebido como seria difícil justificar um pedido de licença de porte de arma. Bom, uma licença era, na realidade, o que menos se ajustava à missão que, cada vez mais, sentia precisar de levar a cabo.
            Servi-me de um whisky, como já vinha sendo hábito, sorvi um pequeno gole e, não sei por que golpe de clarividência, caí em mim. Os silenciadores da net eram, obviamente, pelos materiais usados, por tudo, extremamente fracos; talvez por isso estivessem na net. O telhado sem casa que o sustentasse desabou-me em cima, como não podia deixar de ser. Aquilo de que andava à procura seria, talvez, uma 6.35, mas recordei-me de uma conversa que tivera com um amigo ou conhecido de outros tempos, tipo pouco recomendável ou, pelo menos, dúbio: o que se arranjava no mercado negro eram armas que, a qualquer momento, por serem transformadas ou meras velharias, nos poderiam explodir na cara. Para mais e não menos importante, não tinha a mínima ideia de como comprar o que quer que fosse no mercado negro, onde quer que ele se situasse. Finalmente, não seria nada boa ideia deixar marcas indeléveis do que se me insinuava levar a cabo e, quase certamente, terminar os meus dias potencialmente úteis numa cela, à mistura com um bando de tipos estranhos que me forçassem a transformar-me numa tentativa de sobreviver. Levei a mão à cabeça e despenteei-me inadvertidamente num gesto rápido.
            Estava de volta à estaca zero.

            Quando me preparava para mais uma noite de sono simultaneamente branco e inquieto, algo me impeliu a, no caminho, regressar ao quarto que fora, era e sempre seria de Ricardo. Liguei o interruptor, entrei, olhei em volta incerto do que procurava e comecei a remexer nas gavetas que sempre respeitara até então. Estava tentado a retirar-me. Talvez esperasse encontrar restos da droga que pusera fim aos sonhos que o meu filho pudesse, algum dia, ter acalentado. Se aplicasse uma dose excessiva a mim mesmo, seria a forma mais fácil de pôr um ponto final no meu tormento, juntando-me a quem amara para a eternidade. Disparate perfeito, claro. Sabia que não o faria. Faltavam-me a coragem e a lógica em simultâneo. Por todo o lado, entretanto, não encontrei mais do que banalidades que me magoavam pelo simples facto de existirem ou, de alguma forma, já terem existido. Roupas. Fotos. CDs. Livros. Revistas. Tudo o que se poderia encontrar em qualquer quarto de qualquer jovem. Subitamente, um objeto metálico, no fundo da última gaveta que me preparava para fechar, captou-me a atenção. Afastei todos os objetos que lhe barravam o caminho e agarrei-o, primeiramente hesitante e, de seguida, mais fortemente… Era aquilo a que, normalmente, chamamos um taser. Onde diabo é que ele arranjara aquilo e em nome de que deus? Durante largos momentos, fitei-o, equilibrado sobre a minha mão em concha. Instintivamente, pressionei um botão e vi nascer uma espécie de faísca. Larguei o botão e repeti o gesto um par de vezes.
            Uma ideia começou a nascer em mim…





























XI

            Andei uns tempos a remoer na ideia…
            Por fim, certo dia, dei comigo a combinar um jantar com Lucas, tal como nos velhos tempos, para os reviver um pouco. Na verdade, não. Pretendia obter informações acerca de Luís e, como não o tinha na minha lista de contactos, achei que Lucas poderia servir bem como informador desapercebido. O jantar correu bem. Comemos bem, bebemos melhor, conversámos como se nos encontrássemos todas as semanas e, no final, quando nos despedimos, já tinha o que pretendia, para além da confirmação de que Luís estava com um problema de coca e a certificação de que a coisa era preocupante e não dava sinais de parar.

            - Luís?
            - Quem fala?
            - É o Miguel, meu. O Miguel Andrade. Lembras-te de mim ou já me esqueceste?
            - Oh, Miguel! – Luís passou instantaneamente do tom formal para o entusiasmo excessivo que o caracterizava – Então, que contas? Queres marcar um café, qualquer coisa? – Facilitava-me a vida. Como calculara, não precisara de dar muitas voltas à conversa nem de nenhum tipo de explicação relativamente elaborada para marcar um encontro. Ele era assim, o perfeito bom rapaz, infelizmente sempre pronto a fazer algum tipo de disparate por excesso de otimismo. No entanto, acabava sempre por aterrar de pé, como se alguma fada madrinha lhe tivesse concedido o dom da boa fortuna nos tempos mais remotos da sua existência. Pessoalmente, não estava tão certo de que a sorte pudesse durar eternamente, era naturalmente mais pessimista, ou realista, embora nunca saibamos exatamente onde começa uma e termina a outra coisa, já que só Deus, os deuses, o acaso ou as fadas madrinhas detêm o segredo desses mistérios. De certeza que ele não concordaria.

            Encontrámo-nos num sábado nublado ao início da tarde. Tomámos o nosso café. Felizmente, não começou com a conversa dos tarolos ou o diabo… Caso contrário e para manter o clima, ainda me poderia ter visto forçado a tirar, pelo menos, um par de passas e o facto é que, para mim, não para muitos, mas certamente para mim, seria como ser tratado por um acupuncturista com Parkinson. Bom, gostos não se discutem, mas preferi assim. Conversámos e conversámos, sobretudo acerca dos velhos tempos, mas não só…
            - Meu, sabes que descobri a forma de ganhar milhões facilmente? – O olhar de Luís fixou-me de modo vibrante, aguardando uma resposta. Pausei brevemente e fiz-lhe a vontade, forjando curiosidade:
            - Ganhar milhões, hmm? Suponho que não estejas a falar no euromilhões…
            Luís inclinou-se na mesa e entusiasmou-se:
            - Sim, pá, milhões. – exprimia-se muito rapidamente – O futuro está nos carros elétricos. Sabes muito bem que o petróleo se vai esgotar. Tenho andado a pensar nisso e tenho cada vez mais a certeza que se arranjar investidores à altura, posso ganhar quanto quiser a fabricar carros elétricos. É fácil, na verdade. Contra factos não há evidências e quem for esperto vai apostar na ideia sem hesitações. Para mais, vamos ser pioneiros e isso dá-me todas as vantagens!
            - Pois. Já ouviste falar dos Teslas?
            Luís ignorou-me totalmente e interrogou:
            - Então? Que achas? De certeza que muitos desses nabos que para aí andam e que se consideram grandes industriais teriam gostado de ter tido a ideia. Mas as ideias não surgem à toa, é preciso pensar. – Levou o indicador à têmpora e abriu-se num enorme sorriso.
            - Então, achas que fabricar carros elétricos é a solução, hã? Mas, olha, as baterias são todas fabricadas na China. Isso não te complica um bocado a vida?
            Ponderou não mais que um instante e concluiu:
            - Ó pá, pois é. Se calhar, tenho que ir fazer um estágio na China para aprender o modus operandi deles e fazer contactos!
            Mas adiante, conversa aqui, conversa ali, não tinha decorrido muito, com mais cautelas do que as que provavelmente teriam sido necessárias, convencera-o a levar-me consigo numa das suas aquisições de cocaína. Sem sequer grandes interrogações. Ele encarava aquilo como uma aventura e não se importava de a partilhar comigo. Concluí, e já desconfiava, que frequentava o tal bairro, não muito longe de casa da Joana. Não paguei a conta porque ele me impediu, saímos para a rua e entrámos no seu automóvel, um Audi rebrilhante no seu cinzento metalizado. Partimos em excesso de velocidade, como caminhavam em excesso de velocidade os zombies que circundavam a pé, nas suas gangas desmazeladas e sapatos gastíssimos de tantas maratonas, a zona para onde nos dirigíamos.

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