XVI
O
Garrafão D’Ouro ficava no segundo andar de uma rua em pleno coração da cidade,
ladeado de outras ruas que subiam, desciam e se entrecruzavam em paredes
maceradas de fuligem e ruído. Ali, entretanto, naquela quase-viela, morava
alguma calma, como se um muro invisível se interpusesse entre ela e a cidade
propriamente dita. Nunca tinha dado por aquele restaurante desanunciado,
espécie de oásis na medida em que o podia ser, à porta de onde me esperavam
dois responsáveis da Câmara, um deles relativamente baixo, anafado e corado e o
outro de estatura média, com um bigodinho bem cuidado, ambos guardados por
fatos escuros e obviamente engravatados. Socorrendo-me do meu estatuto de arquiteto-criador,
e porque o adereço gravata me sufocava como um guardanapo malevolamente
entalado, levara comigo uma indumentária simples: uma camisola de gola alta
escura, um blazer de bombazine, umas calças cinzentas e uns sapatos pretos de
atacadores. A buzina forte de uma camioneta de passageiros ressoou suficientemente
perto quando o homem do bigode se me dirigiu de modo estudadamente afável:
-
Arquiteto Miguel Andrade? – estendeu-me a mão, num aperto forte apenas o
necessário para revelar personalidade – É um prazer enorme conhecê-lo. – o mais
baixo sorriu e esboçou uma espécie de vénia concordante – Vamos, por favor… O
restaurante fica no segundo andar. É uma das joias menos visíveis da cidade. E
no entanto, quem o conhece nunca deixa de voltar.
Subimos
umas estreitas escadas de madeira antiga, entrámos e sentámo-nos numa mesa
previamente reservada. O local, iluminado por estreitas janelas de venezianas entreabertas,
era inteiramente dominado pelas madeiras e faianças talvez com algum valor
emprestado pelo tempo. Notei que os talheres eram em prata. Os empregados,
nitidamente com escola, desdobravam-se em simpatias convenientes e recatadas de
quem sabe bem o tipo de gorjeta a que se habilita.
Tudo
ali, quem o diria, era luxo, aquele tipo de luxo que a maioria desconhece ou
imagina perdida para sempre. Conversámos interminável e entediantemente sobre
tudo e sobre nada, sobretudo política e economia, precisamente duas coisas que
tinham o condão de me aborrecer. Aqueles lugares-comuns, do género “Nos Estados
Unidos só têm uma semana de férias” ou “O problema é que os portugueses gostam
de ter um emprego, não um trabalho”. Comemos. Bebemos. Tudo excelente, devo
dizê-lo. Só a conversa não avançava. Ainda para mais, os meus dois companheiros
ocasionais que, ao que parece, tinham estudado em Inglaterra, punham-se, de
quando em vez, a trocar impressões naquele Inglês puro que nenhum inglês jamais
utiliza, salvo talvez a própria rainha e, nessas alturas, era como se
momentaneamente me transportasse para outro recanto. Que triste par de snobs!, pensei por várias vezes, tantas
quantas as que eram ocupadas por dois portugueses da Câmara a trocarem palavras
numa língua estrangeira sem lógica aparente.
Enfim,
passada a hora do café e chegada a do digestivo, foi a hora da revelação… Nada
mais, nada menos do que a intenção, por parte da Câmara, de implodir
completamente o bairro do Laranjal, curiosamente o mesmo que visitara com Luís,
e construir no local um grande condomínio fechado de requinte. Tinham pensado
em mim para desenvolver o projeto arquitetónico.
Muito
honestamente, não soube imediatamente o que responder. Que era uma ideia
curiosa? Mas isso era outra história e só a mim dizia respeito. Na realidade,
os meus planos para o futuro do meu gabinete de arquitetura eram muito mais
nebulosos do que alguém poderia imaginar e o meu projeto de futuro
incontestável e inconfessável. Ponderei um pouco. No meio da ponderação, ainda encontrei
um momento para me rir interiormente da possibilidade de lhes responder em
Inglês. Mas simplesmente indaguei:
-
E o que é que pretendem fazer com todos os moradores?
-
Serão todos realojados em diferentes bairros camarários. Completamente separados,
na verdade. Não sei se tem a ideia exata do que por lá se passa, aquilo é um
cancro de droga em plena cidade e a própria polícia receia lá entrar. Assim,
temos não só uma forma de resolver o problema, como ainda de requalificar
completamente a zona e obter algum lucro adicional.
-
E não contam encontrar, digamos, uma certa resistência?
-
Não é preocupante. Depois de estar feito, feito fica.
O
mais baixo interveio:
-
Aliás, têm-se passado coisas estranhas na cidade, parece que é coisa de
gangues. Não sei se tem acompanhado as notícias. Nas últimas semanas, foram já
foram encontrados três pequenos traficantes mortos, todos da mesma maneira, com
embolias causadas por injeções de ar, seringas vazias, está a ver? E marcas,
provavelmente de um tazer, no
pescoço. Sempre o mesmo. Muito off-the-record,
a polícia anda completamente às aranhas…
Sorri
imensamente só para mim e, numa atitude de seriedade, perguntei:
-
A sério?
-
Claro. Se quer que lhe diga, estão melhor mortos do que a gastar dinheiro dos
contribuintes nas prisões.
Sorri
novamente, só para mim. Então, ocorreu-me que o projeto, a ser corretamente
desenvolvido, daria pano para mangas e representaria um caminho de futuro para
os meus colaboradores. Pensei neles. Os meus motivos eram meus, não deles.
Preocupou-me apenas, por instantes, a ideia de que a Câmara poderia não ser das
melhores e mais céleres pagadoras.
-
E a Câmara já dispõe de capitais para pagar as obrigações com que se
comprometer?
O
homem do bigodinho fingiu-se levemente ofendido e salientou:
-
Naturalmente. Já estabelecemos contratos com construtoras de renome e, antes
disso, claro está, com capitalistas muito interessados em investir no projeto. E
temos o aval do Governo. Bom, que me diz, então? Interessa-lhe?
Decorreu
um instante e apertámos as mãos num acordo tácito.
-
Confesso que me sinto feliz por terem pensado em mim. Se é bom para a cidade, é
bom para todos. Agendem-me uma reunião com os vossos engenheiros, digam-me
exatamente o que pretendem e começaremos a trabalhar nisso.
Os
homens trocaram um olhar de satisfação e o do bigode garantiu-me:
-
Faz muitíssimo bem. Vamos tratar disso.
Confesso
que fiquei satisfeito por não se terem congratulado mutuamente em Inglês…
- Jolly good!
- Brilliant!
XVII
Naquele ano,
contrariamente ao que se tinha já tornado um hábito incómodo, feito de chuvas,
ventos e céus enegrecidos, a primavera chegara mais ou menos no seu tempo e eu
decidi fechar a casa e ir passar uns dias de calma e mudança em latitudes
diferentes, por assim dizer. Recordei-me dos tempos de antigamente, quando eu e
Marisa fazíamos um casal feliz, ainda antes do nascimento de Ricardo e da
malfadada doença, e arranquei em direção a Sintra. Sintra, em si, é interessante
mas demasiadamente turística e movimentada, não exatamente o que eu buscava.
Colares, em contrapartida, a dois passos do centro, leva-nos, tanto quanto
pode, aos velhos tempos de Eça, ao mar, a uma certa melancolia agradavelmente
saudosista de um tempo em que, muito possivelmente, não saberíamos viver. A
estradazita que lá nos conduz é ladeada de grandes árvores inclinadas ao modo
de um certo Romantismo, para quem o quiser ou souber ver. Claro que não me
seria possível reencontrar o romantismo que ali vivêramos, eu e Marisa, nos
tempos idos. Mas esperava, ainda assim, recapturar um certo algo que me levasse
a esquecer os momentos difíceis que vivia. À solidão, já me habituara. Não
completamente, claro… Ricardo estava sempre presente no aperto do meu coração e
na minha necessidade inerente de justiça. De alguma forma, entretanto,
convencera-me de que se tudo tem um princípio, tudo tem também um fim, seja ele
qual for, sempre um enigma, e que nada se pode fazer para o evitar. Apenas
esperar. Estava habituado a isso. Os ciclistas que passavam na berma da estrada
como bandos de patos bravos numa espécie de migração circular, todos munidos de
capacetes, símbolo da modernidade, e as casas que, nos quinze ou mais anos que
haviam decorrido sem que me apercebesse, tinham crescido como cogumelos
selvagens, não me incomodavam. E a velha linha férrea desocupada que ainda
ladeava a estrada, por algum motivo, sossegava-me. Os campos floriam
alegremente, pintalgando-me o olhar de expetativas.
Instalei-me num hotel calmo, frente às
ondas escuras do oceano. Sentei-me na varanda, fechei os olhos e relembrei o
passado. Será que o tempo realmente passa ou existirá todo ele em simultâneo,
sendo que temos apenas a incapacidade de o vislumbrar em todas as suas
vertentes? O meu tempo mental, estranhamente sincrónico, porque temos alguma
tendência para todo o tipo de analepses, prolepses e elipses, conduziu-me
rapidamente ao presente e abri repentinamente os olhos, assustado. O rumorejar
marinho, os gritos soltos das gaivotas, o vento norte do lado de fora da
varanda e, sobretudo, a luminosidade solar que tudo penetrava, acalmaram-me.
Recostei-me, acendi uma cigarrilha e deixei-me ficar de olhos postos na curva
do horizonte, soltando baforadas pensativas até quase sentir os dedos queimarem
aquela espécie de nirvana insondável. Calmamente, esmaguei o que restava da
cigarrilha no cinzeiro da mesa branca de plástico e aprontei-me para sair.
Sintra mantinha-se demasiadamente turística e movimentada para mim. Assim,
arranquei na direção oposta, estacionei e saboreei uma refeição simultaneamente
agradável e demasiadamente solitária num pequeno restaurante todo envidraçado da
Praia das Maçãs.
- E o que vai desejar beber?
- Tem Colares?
O empregado, que nada sabia de mim,
nem poderia, explicou:
- O vinho de Colares é um pouco
especial. Nem toda a gente aprecia. Aliás, nem sempre o temos. Mas dispomos de
uma carta de vinhos extensa e poderei aconselhá-lo, se assim desejar…
- Gostaria de uma garrafa de
Colares, por favor.
- Com certeza.
Acabei por me demorar, tanto mais
que o espaço ainda autorizava fumadores e, como verifiquei, pensadores
carregados de ideias e recordações, e, à medida dos diversos aperitivos, do
polvo à lagareiro e da sobremesa, porque apesar de algum desligamento pessoal e
de me encontrar só e rodeado de fantasmas, sempre gostei de me tratar bem, esvaziei
duas garrafas de Colares até à derradeira gota. Por essa altura, já tinha a
cabeça bastante à roda, o que, sabendo-se que o álcool exerce diferentes
efeitos em diferentes indivíduos, longe de me tornar triste e nostálgico, me
aligeirava tudo o que até então me despertava para a minha vertente mais
dramática. Deixei dez euros de gorjeta e levei de troco uma vénia quase
japonesa. Sorri e quase me deixei tentar a deixar mais dez. Em vez disso, saí,
esperançoso de que todas as patrulhas policiais estivessem ocupadas a acompanhar
telenovelas em esquadras suficientemente distantes e, ainda que com alguma
dificuldade em controlar o automóvel numa linha reta perfeita, regressei ao meu
quarto, entupido de sono.
Levara comigo o portátil e um livro,
mas nem me apeteceu tocar-lhes. Escancarei a grande porta envidraçada da
varanda e inspirei fundo o Atlântico. Fechei-a e corri as espessas cortinas. Seguidamente,
estendi-me preguiçosamente na cama de casal, demasiadamente vasta para mim, e
liguei o televisor de forma automática. Passava um noticiário. A crise. As
lutas internas e externas dos partidos. Os dramas todos. A situação
internacional, sempre à beira do abismo. O costume. De súbito, algo me chamou a
atenção. O apresentador falava:
- Parece prolongar-se a luta de
gangues no Norte do país. Mais um indivíduo de cerca de trinta e cinco anos foi
encontrado morto à entrada do prédio onde habitava, com uma seringa no braço,
aparentemente vítima de uma embolia provocada pela injeção de uma seringa
vazia, no que parece ser mais um golpe de um criminoso em série que tem vindo a
atuar desse modo recentemente. A polícia já se encontra no local do crime e não
quis prestar declarações em direto. Ao que conseguimos apurar, no entanto, e
contrariamente às vítimas anteriores, o indivíduo não apresentava marcas de um tazer no pescoço, mas sim queimaduras de
cigarros, e terá sido violentamente espancado antes da ocorrência. A polícia
pensa tratar-se de uma vítima do mesmo assassino ou dos mesmos assassinos e
garante já dispor de pistas que lhe poderão vir a permitir capturar o culpado
ou culpados da assim denominada Operação
Certeza Absoluta a breve trecho.
Acordei da minha pequena letargia,
saltei da cama e soltei um “Imbecis!” que se deve ter ouvido por todo o hotel.
Nessa noite, depois de muito rodopiar pelo quarto sem direção definida, vi-me
forçado a acrescentar um Xanax às minhas garrafas de Colares e acordei, de uma
noite, como sempre, vazia de sonhos, já passada a hora do pequeno-almoço. Que
importava? Fiz as malas, engoli um café curto no bar do fundo das escadas, pedi
desculpa, na receção, por abreviar a minha estadia…
- Com certeza, mas estava tudo bem,
doutor Miguel?
- Tudo ótimo. Infelizmente,
telefonaram-me com carácter de urgência. Uma tia que está muito mal, compreende.
- Naturalmente. Esperamos que tudo
corra pelo melhor com a sua tia.
Meio atarantado, quase perguntei de
que tia estava a falar. Mas não estava tão atarantado assim.
- Muito obrigado. Sim, espero bem…
E arranquei de regresso, apenas com
cuidado suficiente para não ter um acidente fatal na autoestrada. “Imbecis, cambada
de imbecis!”, urrava interiormente. “Tenho que me apressar!”, surgia-me por
vezes. E o meu pensamento, a remoer, não se afastava muito disso.