26.12.18

Ricardo - capítulos XVI e XVII


XVI

O Garrafão D’Ouro ficava no segundo andar de uma rua em pleno coração da cidade, ladeado de outras ruas que subiam, desciam e se entrecruzavam em paredes maceradas de fuligem e ruído. Ali, entretanto, naquela quase-viela, morava alguma calma, como se um muro invisível se interpusesse entre ela e a cidade propriamente dita. Nunca tinha dado por aquele restaurante desanunciado, espécie de oásis na medida em que o podia ser, à porta de onde me esperavam dois responsáveis da Câmara, um deles relativamente baixo, anafado e corado e o outro de estatura média, com um bigodinho bem cuidado, ambos guardados por fatos escuros e obviamente engravatados. Socorrendo-me do meu estatuto de arquiteto-criador, e porque o adereço gravata me sufocava como um guardanapo malevolamente entalado, levara comigo uma indumentária simples: uma camisola de gola alta escura, um blazer de bombazine, umas calças cinzentas e uns sapatos pretos de atacadores. A buzina forte de uma camioneta de passageiros ressoou suficientemente perto quando o homem do bigode se me dirigiu de modo estudadamente afável:
- Arquiteto Miguel Andrade? – estendeu-me a mão, num aperto forte apenas o necessário para revelar personalidade – É um prazer enorme conhecê-lo. – o mais baixo sorriu e esboçou uma espécie de vénia concordante – Vamos, por favor… O restaurante fica no segundo andar. É uma das joias menos visíveis da cidade. E no entanto, quem o conhece nunca deixa de voltar.
Subimos umas estreitas escadas de madeira antiga, entrámos e sentámo-nos numa mesa previamente reservada. O local, iluminado por estreitas janelas de venezianas entreabertas, era inteiramente dominado pelas madeiras e faianças talvez com algum valor emprestado pelo tempo. Notei que os talheres eram em prata. Os empregados, nitidamente com escola, desdobravam-se em simpatias convenientes e recatadas de quem sabe bem o tipo de gorjeta a que se habilita.
Tudo ali, quem o diria, era luxo, aquele tipo de luxo que a maioria desconhece ou imagina perdida para sempre. Conversámos interminável e entediantemente sobre tudo e sobre nada, sobretudo política e economia, precisamente duas coisas que tinham o condão de me aborrecer. Aqueles lugares-comuns, do género “Nos Estados Unidos só têm uma semana de férias” ou “O problema é que os portugueses gostam de ter um emprego, não um trabalho”. Comemos. Bebemos. Tudo excelente, devo dizê-lo. Só a conversa não avançava. Ainda para mais, os meus dois companheiros ocasionais que, ao que parece, tinham estudado em Inglaterra, punham-se, de quando em vez, a trocar impressões naquele Inglês puro que nenhum inglês jamais utiliza, salvo talvez a própria rainha e, nessas alturas, era como se momentaneamente me transportasse para outro recanto. Que triste par de snobs!, pensei por várias vezes, tantas quantas as que eram ocupadas por dois portugueses da Câmara a trocarem palavras numa língua estrangeira sem lógica aparente.
Enfim, passada a hora do café e chegada a do digestivo, foi a hora da revelação… Nada mais, nada menos do que a intenção, por parte da Câmara, de implodir completamente o bairro do Laranjal, curiosamente o mesmo que visitara com Luís, e construir no local um grande condomínio fechado de requinte. Tinham pensado em mim para desenvolver o projeto arquitetónico.
Muito honestamente, não soube imediatamente o que responder. Que era uma ideia curiosa? Mas isso era outra história e só a mim dizia respeito. Na realidade, os meus planos para o futuro do meu gabinete de arquitetura eram muito mais nebulosos do que alguém poderia imaginar e o meu projeto de futuro incontestável e inconfessável. Ponderei um pouco. No meio da ponderação, ainda encontrei um momento para me rir interiormente da possibilidade de lhes responder em Inglês. Mas simplesmente indaguei:
- E o que é que pretendem fazer com todos os moradores?
- Serão todos realojados em diferentes bairros camarários. Completamente separados, na verdade. Não sei se tem a ideia exata do que por lá se passa, aquilo é um cancro de droga em plena cidade e a própria polícia receia lá entrar. Assim, temos não só uma forma de resolver o problema, como ainda de requalificar completamente a zona e obter algum lucro adicional.
- E não contam encontrar, digamos, uma certa resistência?
- Não é preocupante. Depois de estar feito, feito fica.
O mais baixo interveio:
- Aliás, têm-se passado coisas estranhas na cidade, parece que é coisa de gangues. Não sei se tem acompanhado as notícias. Nas últimas semanas, foram já foram encontrados três pequenos traficantes mortos, todos da mesma maneira, com embolias causadas por injeções de ar, seringas vazias, está a ver? E marcas, provavelmente de um tazer, no pescoço. Sempre o mesmo. Muito off-the-record, a polícia anda completamente às aranhas…
Sorri imensamente só para mim e, numa atitude de seriedade, perguntei:
- A sério?
- Claro. Se quer que lhe diga, estão melhor mortos do que a gastar dinheiro dos contribuintes nas prisões.
Sorri novamente, só para mim. Então, ocorreu-me que o projeto, a ser corretamente desenvolvido, daria pano para mangas e representaria um caminho de futuro para os meus colaboradores. Pensei neles. Os meus motivos eram meus, não deles. Preocupou-me apenas, por instantes, a ideia de que a Câmara poderia não ser das melhores e mais céleres pagadoras.
- E a Câmara já dispõe de capitais para pagar as obrigações com que se comprometer?
O homem do bigodinho fingiu-se levemente ofendido e salientou:
- Naturalmente. Já estabelecemos contratos com construtoras de renome e, antes disso, claro está, com capitalistas muito interessados em investir no projeto. E temos o aval do Governo. Bom, que me diz, então? Interessa-lhe?
Decorreu um instante e apertámos as mãos num acordo tácito.
- Confesso que me sinto feliz por terem pensado em mim. Se é bom para a cidade, é bom para todos. Agendem-me uma reunião com os vossos engenheiros, digam-me exatamente o que pretendem e começaremos a trabalhar nisso.
Os homens trocaram um olhar de satisfação e o do bigode garantiu-me:
- Faz muitíssimo bem. Vamos tratar disso.
Confesso que fiquei satisfeito por não se terem congratulado mutuamente em Inglês…
- Jolly good!
- Brilliant!
































XVII

            Naquele ano, contrariamente ao que se tinha já tornado um hábito incómodo, feito de chuvas, ventos e céus enegrecidos, a primavera chegara mais ou menos no seu tempo e eu decidi fechar a casa e ir passar uns dias de calma e mudança em latitudes diferentes, por assim dizer. Recordei-me dos tempos de antigamente, quando eu e Marisa fazíamos um casal feliz, ainda antes do nascimento de Ricardo e da malfadada doença, e arranquei em direção a Sintra. Sintra, em si, é interessante mas demasiadamente turística e movimentada, não exatamente o que eu buscava. Colares, em contrapartida, a dois passos do centro, leva-nos, tanto quanto pode, aos velhos tempos de Eça, ao mar, a uma certa melancolia agradavelmente saudosista de um tempo em que, muito possivelmente, não saberíamos viver. A estradazita que lá nos conduz é ladeada de grandes árvores inclinadas ao modo de um certo Romantismo, para quem o quiser ou souber ver. Claro que não me seria possível reencontrar o romantismo que ali vivêramos, eu e Marisa, nos tempos idos. Mas esperava, ainda assim, recapturar um certo algo que me levasse a esquecer os momentos difíceis que vivia. À solidão, já me habituara. Não completamente, claro… Ricardo estava sempre presente no aperto do meu coração e na minha necessidade inerente de justiça. De alguma forma, entretanto, convencera-me de que se tudo tem um princípio, tudo tem também um fim, seja ele qual for, sempre um enigma, e que nada se pode fazer para o evitar. Apenas esperar. Estava habituado a isso. Os ciclistas que passavam na berma da estrada como bandos de patos bravos numa espécie de migração circular, todos munidos de capacetes, símbolo da modernidade, e as casas que, nos quinze ou mais anos que haviam decorrido sem que me apercebesse, tinham crescido como cogumelos selvagens, não me incomodavam. E a velha linha férrea desocupada que ainda ladeava a estrada, por algum motivo, sossegava-me. Os campos floriam alegremente, pintalgando-me o olhar de expetativas.
            Instalei-me num hotel calmo, frente às ondas escuras do oceano. Sentei-me na varanda, fechei os olhos e relembrei o passado. Será que o tempo realmente passa ou existirá todo ele em simultâneo, sendo que temos apenas a incapacidade de o vislumbrar em todas as suas vertentes? O meu tempo mental, estranhamente sincrónico, porque temos alguma tendência para todo o tipo de analepses, prolepses e elipses, conduziu-me rapidamente ao presente e abri repentinamente os olhos, assustado. O rumorejar marinho, os gritos soltos das gaivotas, o vento norte do lado de fora da varanda e, sobretudo, a luminosidade solar que tudo penetrava, acalmaram-me. Recostei-me, acendi uma cigarrilha e deixei-me ficar de olhos postos na curva do horizonte, soltando baforadas pensativas até quase sentir os dedos queimarem aquela espécie de nirvana insondável. Calmamente, esmaguei o que restava da cigarrilha no cinzeiro da mesa branca de plástico e aprontei-me para sair. Sintra mantinha-se demasiadamente turística e movimentada para mim. Assim, arranquei na direção oposta, estacionei e saboreei uma refeição simultaneamente agradável e demasiadamente solitária num pequeno restaurante todo envidraçado da Praia das Maçãs.
            - E o que vai desejar beber?
            - Tem Colares?
            O empregado, que nada sabia de mim, nem poderia, explicou:
            - O vinho de Colares é um pouco especial. Nem toda a gente aprecia. Aliás, nem sempre o temos. Mas dispomos de uma carta de vinhos extensa e poderei aconselhá-lo, se assim desejar…
            - Gostaria de uma garrafa de Colares, por favor.
            - Com certeza.
            Acabei por me demorar, tanto mais que o espaço ainda autorizava fumadores e, como verifiquei, pensadores carregados de ideias e recordações, e, à medida dos diversos aperitivos, do polvo à lagareiro e da sobremesa, porque apesar de algum desligamento pessoal e de me encontrar só e rodeado de fantasmas, sempre gostei de me tratar bem, esvaziei duas garrafas de Colares até à derradeira gota. Por essa altura, já tinha a cabeça bastante à roda, o que, sabendo-se que o álcool exerce diferentes efeitos em diferentes indivíduos, longe de me tornar triste e nostálgico, me aligeirava tudo o que até então me despertava para a minha vertente mais dramática. Deixei dez euros de gorjeta e levei de troco uma vénia quase japonesa. Sorri e quase me deixei tentar a deixar mais dez. Em vez disso, saí, esperançoso de que todas as patrulhas policiais estivessem ocupadas a acompanhar telenovelas em esquadras suficientemente distantes e, ainda que com alguma dificuldade em controlar o automóvel numa linha reta perfeita, regressei ao meu quarto, entupido de sono.
            Levara comigo o portátil e um livro, mas nem me apeteceu tocar-lhes. Escancarei a grande porta envidraçada da varanda e inspirei fundo o Atlântico. Fechei-a e corri as espessas cortinas. Seguidamente, estendi-me preguiçosamente na cama de casal, demasiadamente vasta para mim, e liguei o televisor de forma automática. Passava um noticiário. A crise. As lutas internas e externas dos partidos. Os dramas todos. A situação internacional, sempre à beira do abismo. O costume. De súbito, algo me chamou a atenção. O apresentador falava:
            - Parece prolongar-se a luta de gangues no Norte do país. Mais um indivíduo de cerca de trinta e cinco anos foi encontrado morto à entrada do prédio onde habitava, com uma seringa no braço, aparentemente vítima de uma embolia provocada pela injeção de uma seringa vazia, no que parece ser mais um golpe de um criminoso em série que tem vindo a atuar desse modo recentemente. A polícia já se encontra no local do crime e não quis prestar declarações em direto. Ao que conseguimos apurar, no entanto, e contrariamente às vítimas anteriores, o indivíduo não apresentava marcas de um tazer no pescoço, mas sim queimaduras de cigarros, e terá sido violentamente espancado antes da ocorrência. A polícia pensa tratar-se de uma vítima do mesmo assassino ou dos mesmos assassinos e garante já dispor de pistas que lhe poderão vir a permitir capturar o culpado ou culpados da assim denominada Operação Certeza Absoluta a breve trecho.
            Acordei da minha pequena letargia, saltei da cama e soltei um “Imbecis!” que se deve ter ouvido por todo o hotel. Nessa noite, depois de muito rodopiar pelo quarto sem direção definida, vi-me forçado a acrescentar um Xanax às minhas garrafas de Colares e acordei, de uma noite, como sempre, vazia de sonhos, já passada a hora do pequeno-almoço. Que importava? Fiz as malas, engoli um café curto no bar do fundo das escadas, pedi desculpa, na receção, por abreviar a minha estadia…
            - Com certeza, mas estava tudo bem, doutor Miguel?
            - Tudo ótimo. Infelizmente, telefonaram-me com carácter de urgência. Uma tia que está muito mal, compreende.
            - Naturalmente. Esperamos que tudo corra pelo melhor com a sua tia.
            Meio atarantado, quase perguntei de que tia estava a falar. Mas não estava tão atarantado assim.
            - Muito obrigado. Sim, espero bem…
            E arranquei de regresso, apenas com cuidado suficiente para não ter um acidente fatal na autoestrada. “Imbecis, cambada de imbecis!”, urrava interiormente. “Tenho que me apressar!”, surgia-me por vezes. E o meu pensamento, a remoer, não se afastava muito disso.

17.12.18

Ricardo- capítulos XIV e XV


XIV

            Pelo fim da tarde, já cansado de tanto socializar, despedi-me eficazmente de todos e saí. O verão ainda tardava e a escuridão apossava-se das ruas, desenhando sombras bizarras sob a luz artificial dos candeeiros. O céu, claro e tão estrelado quanto o pode ser numa qualquer cidade, limpava a atmosfera, tornando mais fácil a respiração e ajudando a ignorar a agressão cinzenta dos tubos de escape, os ruídos perdidos, as buzinadelas. Na distância, uma igreja tocava a finados. Que diabo, os sinos das igrejas pareciam só conhecer a melopeia monótona dos finados! Ou seria o meu cérebro que selecionava particularmente aquele toque e se distraía nos momentos em que, por exemplo, não fizessem mais do que martelar a passagem das horas…
            Encostei-me a um candeeiro e acendi uma cigarrilha relativamente desacordada. Olhei a vaga de fumo azulado que se perdia em direção às estrelas mais resistentes e ao luar desmaiado. Por instantes, deixei-me ficar num estado de uma certa meditação, pensando sem pensar, e ocorreram-se-me, uma vez mais, o olhar revirado, o branco dos olhos, a carne macilenta a enrugar-se, do homem da seringa. Escondi simultaneamente novo sorriso e uma certa preocupação que me deve ter trespassado sem que ninguém tenha reparado. Havia gente que caminhava, sós ou em grupo, todos demasiado concentrados no que criam ser as suas preocupações ou os seus lazeres. Ou absolutamente nada para além do momento. Diziam coisas que se perdiam totalmente além dos meus sentidos. Ignorava totalmente para onde cada um se dirigia. E eu? Não, eu conhecia exatamente o caminho que me levaria de volta a casa.
            Muito subitamente, senti que alguém me tocava ao de leve nas costas. Não me cheguei realmente a sobressaltar nem a surpreender pela figura entrapada de uma velha de olhar vivo que quase se me encostava. Um cheiro a algo como mofo emanava das suas roupas e do cabelo desgrenhado, untado com sabão macaco ao longo do seu branco amareliço. Achei que me ia pedir uma esmola e, basicamente para que não me incomodasse, retirei automaticamente a carteira do bolso da minha gabardina, pronto a dar-lhe uma moeda de euro. Gesticulou um sinal enfático de negação e sorriu um sorriso de dentes podres. Insisti e ela mesma me forçou a mão e a carteira de regresso ao bolso. Podia já não ser dona daquele tipo de juízo que leva as pessoas a consideraram alguém ajuizado. Pausei incomodado e, com um tom de voz forçadamente empático, perguntei:
            - A senhora precisa de alguma coisa?
            A velha voltou a revelar-me o seu sorriso carcomido, contrastante com o olhar vibrante apesar das rugas que o ladeavam e, num tom de voz gasto, apontou para a minha cigarrilha e disse-me:
            - Sabe que não é isso que o vai matar…
            - Perdão?
            - Um cigarro ou… - pausou brevemente – como é que isso se chama?, uma cigarrilha, enfim, tabaco, não matam sem mais nem menos. Não importa o que lhe digam. A alma é que mata. Quando a alma começa a definhar e se vai tornando cada vez mais pequena, muito pequenina, meu filho, isso sim, isso é que mata. Perder a alma é que mata. É a alma que nos faz viver e a alma que nos faz morrer. Está tudo na alma, é como uma luz que só existe quando ligamos o interruptor. Quando nascemos, liga-se um interruptor. Quando morremos é porque houve algum problema com o interruptor que nenhum eletricista chegou a tempo de consertar. Ou que tinha atingido o ponto de já não ter conserto. Está a entender-me?
            Não posso afirmar que estivesse. Que espécies de figura e de estranho discurso vinham, assim, surpreender os meus não-pensamentos? A velha levou as mãos aos rins num queixume surdo e interrogou:
            - Tem tomado bem conta da sua alma?
            Devia estar senil e com delírios religiosos.
            - Olhe, minha senhora, agradeço. De certeza que não lhe faz falta uma esmolinha? – perguntei.
            - Não está a entender. A sua alma é a sua luz. Pode fumar essas coisas, mas tenha muito cuidado com a sua alma. A luz não vem do tabaco incandescente, mas sim da alma. Sabe o caminho para casa? Quero dizer, o caminho que realmente o leva a casa?
            Senil e com delírios religiosos. Parecia fazer muito pouco sentido. Como era, infelizmente, natural. Achei que alguém deveria tomar conta de gente naquele estado. Não eu, naturalmente. Alguém. O Estado, que se ia demitindo paulatinamente dos seus velhos e dos seus fracos. Ou uma instituição de caridade. Ali é que ela não estava bem.
            - Tem alguém que tome conta de si, minha senhora? Precisa de alguma coisa? – repeti-me.
            A velha soltou uma risadinha, interrompida por uma leve tossiqueira. De seguida, colocou-me a mão sebenta no braço da gabardina e, por surpresa e educação simultâneas, ainda que sentindo uma espécie de nojo interior de quem se vê invadido por uma criatura alienígena, permiti o toque.
            - Agora, se me quiser dar uma esmolinha, agradeço, meu senhor…
            Fui ao bolso, retirei a carteira e passei-lhe uma nota de cinco para a mão, tão rapidamente quanto pude.
            - Deus a guarde. E tenha cuidado consigo, que as ruas não são seguras.
            A velha reiterou a sua risadinha seca e, sem um piscar de olhos, ficou a olhar enquanto eu me afastava atarantadamente. Não olhei mais para trás e apressei-me a refugiar-me no triste conforto burguês da minha casa. Só a mim aconteciam coisas destas!














XV

            As nuvens, num sudário escuro e irregular, tinham ocultado as poucas estrelas da noite anterior e ameaçavam derramar-se com a força de muitos tsunamis sobre as ruas onde, ainda assim, as pessoas se atarefavam das mais diversas maneiras, com modos alegres inclusive, o que me causava alguma confusão. Um vento cortante soprava do norte. Há quem diga que a chuva é ótima porque ioniza o ar. Perfeito. Pessoalmente, no entanto, preferiria que se dedicasse a ionizar os céus e a engripar as legiões de anjos e arcanjos de louros e longos cabelos encharcados a pingar no algures. Prefiro ser deixado em paz. Mas não há nada que se possa fazer quanto a isso.
            Observei, enquanto caminhava, afastando-me do parque de estacionamento que me levava couro e cabelo… Um homem de fato-macaco, que pintava uma parede em tons claros, assobiava baixinho uma canção que não soube nem me importou muito reconhecer. Um entregador de pizzas passou a alta velocidade, com a sua caixa colorida nas traseiras da motorizada e uma mistura de pressa sem motivo e inclinadas manobras mortais adiante. Surgiu-me na mente, muito brevemente, a cena que certa vez presenciara, um entregador de pizzas que, ao fazer uma curva encostado ao passeio, embateu em cheio contra uma camioneta que se encontrava estacionada logo após a viragem e ali ficou estendido, inanimado, não penso que o capacete lhe tenha valido. Um homem carregava ao ombro um caixote, aparentemente muito pesado, rapidamente, como se não lhe pesasse ou, pelo menos, como se tanto peso fosse um dado adquirido e absolutamente banal da existência. Duas mulheres bebericavam um café e conversavam animadamente numa pequena esplanada que alguém se esquecera de desmontar, estranhamente alheadas do vento que as despenteava sem dó nem piedade. Talvez conversassem sobre namorados. Talvez combinassem uma festa. Talvez discutissem vestuário. Talvez se reportassem a coisas do trabalho, é curioso que as pessoas gastam grande parte das suas vidas a falar sobre trabalho, para além de trabalharem; há, inclusive, quem se dê mal com a reforma e, ironicamente, talvez não seja mau de todo esta tendência atual de esticar a idade da reforma até à hora da morte ou quase, ficam quase todos satisfeitos e quem se importa com os insatisfeitos? As buzinas, que a lei por todos ignorada proíbe, não se calavam na cegarrega diária das longas filas e pareceu-me até que alguns condutores não conseguiriam viver no vazio daquilo.
            Então, ribombou um poderosíssimo trovão de guerra e as nuvens derramaram-se num gesto combinado sobre a alegre humanidade entorpecida. Não se via um metro à frente. Mas eu, já à porta do meu gabinete, rodei a chave, entrei para o seco e fechei a porta energicamente. Sim, de algum modo, sentia-me enérgico. Ter-me-ia aquela horda de desconhecidos influenciado subrepticiamente?
            - Bom dia a todos! – exclamei, num tom de voz tão elevado que quase me surpreendi, enquanto pousava a gabardina num cabide.
            Os olhares voltaram-se para mim e retribuíram o cumprimento. Notavam-se réstias de sono em alguns. Outros estavam mais despertos. Conforme. Sentei-me, quase me atirei, na minha cadeira e perguntei:
            - Então? Que há de novo?
            João rodou o ecrã do seu computador na minha direção, aproximei-me com um impulso das rodinhas do meu assento e ele começou, profissional e entusiasticamente, a mostrar-me projetos que eu já conhecia, ou que conhecia razoavelmente, um após outro, após outro, todas aquelas imagens… Que tédio! Não sei por que carga de água aquilo me entediava ao ponto de querer encostar a cabeça sobre a secretária e desejar boa noite a todos. Do outro lado da sala, Marília informou-me que tinham telefonado da Câmara, que gostariam de agendar uma reunião. Despachei-os num gesto de mão que ninguém na Câmara viu, agradeci a informação e disse que mais tarde trataria do assunto. João continuava a aborrecer-me com maquetas de casas cúbicas no ecrã. Que tédio, sim… Esperei que ele não se apercebesse embora, com franqueza, tanto se me desse. Sorri e dei-lhe uma palmadinha aprovadora nas costas.
            - Obrigado, João. Está tudo muito bem encaminhado.
            Regressei à minha secretária. Liguei o computador e pesquisei as contas de email. Na verdade, não cheguei a abrir nenhum, fiquei-me pelos títulos. Suspirei audivelmente e penso que recebi alguns olhares discretos e automáticos. Ergui-me, fui ao bolso interior da gabardina e retirei uma cigarrilha. Fitei-a, uns instantes, contra a luz artificial da sala, acendi-a e soltei uma larga baforada em direção ao teto. Vi Marília olhar-me de lado e, tão discretamente quanto soube, engolir em seco de volta aos seus afazeres. João parecia não ter dado por nada. Andreia, a meio da sala, dirigiu-se-me:
            - Miguel… Desculpe, mas é proibido fumar em locais de trabalho. Não quero interferir. Mas é. Não é?
            Pigarreei e perguntei-lhe com um largo sorriso:
            - A partir de hoje não é. Está a pensar chamar as autoridades?
            Andreia, uma estagiária que acolhera a pedido de um amigo, pareceu-me surpreendida e embaraçada. Forjou um leve ataque de tosse. Sim, sei perfeitamente que o forjou.
            - Eu não queria dizer… Bem, é só porque é proibido e porque há motivos
para isso.
            - Ah! – Exclamei.
            Inspirou fundo e prosseguiu:
            - Sabe que aqui mais ninguém fuma… - neste instante, já éramos olhados pelos restantes - … e que há o fumo em segunda mão e os riscos do tabaco, essas coisas. Confesso que a mim me incomoda. Não sei se incomoda mais alguém…
            Ninguém acrescentou palavra. Escutavam a conversa com curiosidade. Não sei o que gostariam de ter dito e não disseram. Andreia deve ter-se sentido desapoiada…
            - Bom, é apenas uma questão de nos respeitarmos mutuamente. Não sei. Francamente, o fumo do tabaco incomoda-me.
            Recordei-me do meu percurso de vida, grande parte dele passado em cafés, caves, restaurantes, bares, polivalentes e corredores do liceu, salas de aula da universidade, concertos selváticos, casas de jogos, cinemas, casas de chá, os transportes públicos inclusive, quando eu não passava de um garoto e seguia pela mão do meu pai, casas atafulhadas de gente em que não se via um palmo à frente do nariz, chega, acho que já me expliquei, e isso não parecia incomodar ninguém. Agora, alguém começava logo a tossir à vista de uma pequena nuvem azulada à distância. E a ter muito medo de tombar para o lado com cancro instantâneo. Tudo se tornara instantâneo. Certo, reconhecia os malefícios todos do tabaco e compreendi que estava a desrespeitar os outros de acordo com as normas da atualidade, e toda a gente sabe como as normas são flexíveis, atualizáveis e aparentemente definitivas, mas estava pouco incomodado com o facto. Na verdade, sentia um estranho prazer em chamar a morte lentamente, lentamente, em desafiá-la como numa arena que eu gostava de julgar conhecer.
            - Ok. – disse enfaticamente – Se me permitirem terminar a minha cigarrilha ocasional, peço desculpa e agradeço. Relaxa-me.
            Tirei mais duas ou três passas, fui à porta e lancei o que restava da cigarrilha, quase tudo, com um toque de indicador contra o polegar, asperamente, para o meio da chuva forte que se encarregou de a fazer perder num redemoinho. Concentrei-me por momentos na monotonia repetitiva da tempestade furiosa e interroguei-me por onde andaria a velha da noite anterior. Fechei a porta, irrompi pela sala, bati palmas e declarei:
            - Minha gente, hora de fazermos uma reunião!

            Estávamos todos instalados em redor da mesa longa. Corri os estores das largas vidraças. Era olhado com alguma curiosidade mas não demasiada… Na verdade, não era incomum eu marcar reuniões de modo abrupto. Só porque me lembrava de algo. Não éramos nenhuma multinacional cheia de pró-formas. Já há muito que eu instalara, juntamente com alguns audiovisuais necessários, uma desnecessária aparelhagem de som em duas versões: leitor de CDs e hi-fi ou gira-discos. Optando propositadamente pelo mais antiquado, retirei um velho vinil e pu-lo, com cuidado de mãos, a rodar um tema:

“So long, Frank Lloyd Wright.
I can’t believe your song is gone so soon.
(…)
Architects may come and
Architects may go and
Never change your point of view.
(…)
I never laughed so long
So long
So long.”

Desliguei. Cruzei os braços e fiquei a olhá-los de pé, à espera de uma reação que tardava. Era mais ou menos natural visto que, tanto quanto sabia, nenhum dos meus colaboradores possuía o dom de me ler a mente. Por fim, interroguei:
- Então?
Todos se entreolharam perante o enigma. João adiantou-se e confessou que não sabia onde eu pretendia chegar. Os outros aquiesceram.
- Querem que passe o tema outra vez? – interroguei provocatoriamente.
- Acho que não é preciso. – tornou João a falar em nome geral – É Paul Simon, não é? Frank Lloyd Wright e tudo isso… É um tema bonito. De resto, suponho que nos tenha reunido com outra finalidade. Mesmo que tenha sido um momento calmo e interessante.
Sorri de volta ao sorriso que me dirigia, sentei-me confortavelmente no lugar que sempre ocupava, a cabeceira da mesa, arregacei ligeiramente as mangas, apoiei e estendi os braços e entrelacei os dedos das mãos.
- Ok. A partir de hoje, fora os projetos em andamento, acabam-se as casas cúbicas. São uma poluição pretensamente funcional para os olhos dos cidadãos. E todos sabemos muito bem quanta poluição paira no nosso mundo e não creio que seja necessária mais e mais. Não fazemos mais casas cúbicas. Nem pontes cúbicas. Nem nada cúbico. Coisas cúbicas acabaram-se. O mundo já é quadrado demais para suportar tanto cubismo no pior sentido.
Burburinho. O meu sorriso foi indisfarçável, e nem eu o pretendia disfarçar, diante da surpresa geral.
- Quem é que aqui gosta mesmo muito de arquitetura? – perguntei.
Consentimento geral. Já sabia. Não é comum um arquiteto não o ser por vocação.
- Quem é que aqui considera essas coisas cúbicas o topo da arquitetura? – insisti.
- Bom… - principiou Marília - …, é óbvio que gostaria de poder ser mais criativa. Se bem que possamos perfeitamente ser criativos no âmbito dessas coisas cúbicas, como lhes chama, e que isso até seja, de certa forma, um desafio. Mas não sei se nos encontramos em posição de fazermos exatamente o que quisermos. Os clientes chegam até nós e é isso mesmo que pretendem. Começamos a recusar clientes? E depois? Fechamos portas? Não podemos propriamente dar-nos ao luxo de recriar Capelas Sistinas ou Casas da Cascata.
- Pois. – concordei – Não estou a dizer que possamos fugir completamente ao mainstream. O que quero dizer é que quando nos chegarem com essas ideias, porque obviamente as pessoas não têm grande sensibilidade arquitetónica nem isso se lhes pode exigir, têm uma vontade comercial e isso é compreensível, passamos a tentar mostrar-lhes opções. Se persistirem na ideia inicial, fazemos-lhes a vontade. Mas, por princípio, esforçamo-nos para os conduzir por caminhos mais interessantes.
- E depois… há ainda as exigências camarárias. Não podemos querer ser assim tão diferentes. – arriscou Andreia.
Impacientei-me.
- As câmaras que se danem. Não passam de políticos e tecnocratas e têm todos as cabeças no umbigo. Com jeitinho, damos-lhes a volta. Podemos perfeitamente fazer casas não cúbicas, transmitindo-lhes a impressão de que fazemos casas cúbicas. Aí é que tem que morar a nossa criatividade. Temos que ser uma espécie de prestidigitadores da arquitetura. Como estamos não tem graça. Temos que conseguir imprimir um cunho pessoal, nosso, enquanto equipa coesa e com ideias, ao que projetarmos, ok? Sei que torna tudo mais trabalhoso. Mas penso que, também, menos enfadonho. Quem é que está comigo? Na verdade, isto até poderá ser uma ordem, mas quero ter a vossa concordância, quero ver-nos como uma equipa a sério. Empenhados. E inteligentes. Não somos exatamente engenheiros de obras públicas. Vá, quem está comigo?
- Se assim é… - disse João -…, estou de acordo. Para dizer a verdade, estou muito de acordo.
Os restantes acompanharam-no.
- Ora muito bem. Perfeito! Estão dispensados. Obrigado por me terem escutado e compreendido. – finalizei, extremamente agradado.
Enquanto os via retirarem-se, chamei Marília e pedi:
- Importava-se de me trazer os dados de que me falou? Aquele pedido de uma reunião da Câmara? Obrigado. E traga-me ainda um cafezinho…
Marília surpreendeu-se, bem o vi, mas preparava-se para aceder, o que não deixava de ser interessante.
- Estou a brincar. – aligeirei. E vi-a relaxar um pouco – Mas preciso mesmo dos dados que aí tiver relativos ao contacto da Câmara.
- Claro. – respondeu. E saiu, por instantes.
Enquanto aguardava que regressasse com uma cópia de algum email, dados anotados de um telefonema ou algo assim, inspirei profundamente e encostei-me, satisfeito como um felino satisfeito, ao fundo da cadeira. No exterior, a tempestade não abrandara, mas os vidros duplos e os estores tornavam-na virtualmente invisível. Como se acontecesse num canto recôndito do mundo e nos chegasse apenas num impessoal flash noticioso.

10.12.18

Ricardo - capítulos XII e XIII


XII

            A tarde escurecera ainda mais e um rebanho de nuvens trespassava os sentidos antes de, finalmente, esburacar caoticamente o cérebro.
            - Pá.. – disse assertivamente - …, vamos ficar por aqui que não quero ficar sem carro e este custou-me a ganhar.
            Ele é que sabia. Achei que seria provavelmente sensato. Acenei concordantemente, saímos e seguimos pela rua que descia num plano inclinado. Luís seguia com demasiada rapidez e tornava-se-me difícil acompanhar-lhe o passo. Pedi-lhe que abrandasse um pouco.
            - Ninguém vai morrer se demorarmos mais uns minutos… A negritude pairava, ameaçando um intenso chuveiro. Luís, travou a fundo e estacionou com tal precisão que pensei se tal se deveria à sorte ou se a coca apurava assim os sentidos.
            - Ouve lá, queres ir ver como é ou não? É que se não queres, ficas por aqui, que eu conheço o caminho.
            - Tem calma. Ok. Vamos lá. Mas está a custar-me acompanhar-te.
            - Falta de exercício, meu! Tens que te inscrever num ginásio.
            Entre a opção da coca e a do ginásio, o raciocínio tornava-se, no mínimo, curioso. Sendo eu o interessado ou sendo eu um dos interessados, por maior distância que pudesse haver entre as razões de cada, acedi e prosseguimos em marcha. Talvez escapemos à chuvada se nos despacharmos, pensei, num esboço de justificação.

            Por fim, chegámos junto a uma espécie de descampado que me trouxe à mente um daqueles cenários fílmicos americanos do pós-Terceira Guerra. Estacámos, um instante apenas, no entanto o suficiente para eu tirar a fotografia do conjunto. Eram grupos de edifícios extremamente elevados em cimento cru e descascado, pousados num chão de terra batida. Uma enormidade de grafitos selváticos e esquissados à toa. O senhorio não parecia ter-se preocupado enormemente com a manutenção e interroguei-me se algum arquiteto honesto se dignara olhar para lá. À entrada de uma das torres, na distância e à vista de toda a cidade, polícia incluída, formava-se uma fila de gente meio paciente, meio impaciente, mas certamente determinada. Não achei que alguém nos cedesse o lugar, mas foi para lá que nos dirigimos. Pelo caminho, senti-me observado com desconfiança e nada à-vontade. Ainda assim, permitiam-nos seguir caminho sem nos darem um tiro ou uma tareia. Luís parecia sentir-se mais em casa do que eu e, embora intimamente inquieto face àquele mundo diferente, eu aproveitava a boleia.
            Posicionámo-nos na fila e aguardámos, aguardámos infinitamente enquanto subíamos a escadaria que rodeava um grande vau interior cada vez mais elevado e estonteante e cruzávamos portas de madeira barata, em estado extremamente degradado. A tonalidade do cimento tornava-se opressiva. O corrimão, se assim quisermos chamar à parede baixa externa onde nos segurávamos, era extremamente fino, parecendo poder sofrer uma derrocada a qualquer instante. Manchas de humidade acumulada que, por vezes, cediam lugar a fugas de água de que ninguém trataria, pintavam tetos e paredes, aqui e ali. Os cheiros misturavam-se e eram, regra geral, bastante incómodos. A fila avançava lentamente e a impaciência própria da expetativa começava a sobressair entre muitos dos que nos acompanhavam. Pareceu-me ver uma gota de suor escorrer na testa do próprio Luís. O mais interessante, ou o mais incrível, era que sem dúvida muita gente morava ali, naquele universo deslocado e quase bizarro. Bizarro para mim, especifiquei em pensamento. Para toda aquela multidão, o universo era aquele, não outro.
            A dada altura, a fila terminava. Não estaríamos a mais de uns passos. Tive, então, a certeza de ver uma gota de suor escorrer pela testa do meu acompanhante abaixo. Arrepiou-me e enojou-me. Mais uns degraus e encontrámo-nos diante da porta da Fininha, figura conhecida, eu próprio ouvira falar dela, e quem não ouvira, que controlava aquele negócio e, ao que parecia, nunca se deslocava ao exterior. Escutara histórias mirabolantes acerca dela… Que tinha uma banheira em ouro maciço. Que tinha diamantes e outras joias incrustadas naquelas paredes de cimento que não supus que diferissem do resto, ainda que a imaginação me permitisse ir mais além. Que se encontrava rodeada de um verdadeiro exército de mercenários que sempre a rodeava. É estranho, no fundo é como viver abastadamente numa prisão, raciocinei.
            A porta encontrava-se entreaberta, mas tornava-se complicado vislumbrar o interior de modo a compreendê-lo. Enquanto Luís controlava uma certa agitação que nitidamente tomara conta de si e fazia a sua compra, procurei, talvez com indisfarçada curiosidade, examinar o que poderia estar além da semiobscuridade daquela porta. Um indivíduo extremamente alto e encorpado como um barrote de aço tapou-me o campo de visão e, muito rudemente, mandou-me afastar:
            - Que é que foi, amigo? Está à procura de alguma coisa?
            - Não, nada. Peço desculpa.
            - Ah, bom. Mantém-te à distância!
            Obedeci. Sabia o que era bom para mim. Depois, descemos rapidamente a escadaria. Quase tropecei num grupo de pessoas que, entretanto, não pareceram dar por nada.
            Fizemos o caminho de volta e, desta feita, não me queixei da maratona. Mesmo se o regresso era sempre a subir. Tinha, honestamente, vontade de me afastar.
            Luís, simultaneamente calmo e tenso, estranho cocktail, levou-me junto ao meu automóvel e despediu-se sem grandes delongas:
            - Liga, pá. Temos que nos voltar a encontrar!
            Sorriu e arrancou ainda mais rapidamente do que antes. Fiquei a vê-lo desaparecer perigosamente na distância de uma curva.
            Por mim, tinha o que queria. Bom, não exatamente o que queria mas, pelo menos, uma ideia. Não tencionava voltar a falar com Luís tão cedo e não estava certo de que ele mesmo sentisse uma tão real vontade de se encontrar comigo tão depressa. Entrei no carro, liguei a ignição e, ainda tonto da experiência, regressei a casa com a chuvada ainda suspensa.









XIII

            O tempo arrastou-se e voou, conforme…
            Todos os anos, era tradição, a família reunia-se para a celebração do domingo de Páscoa, geralmente em casa de Joana, a eterna anfitriã. Aquele ano não foi exceção. Estava menos gente do que por vezes já sucedera mas era, achava eu, ainda assim, uma boa carga de trabalhos. Por isso mesmo, ofereci-me para ajudar no necessário até levar com duas ou três negas consecutivas. Ainda assim, apareci mais cedo e voltei, sem sucesso, a oferecer os meus préstimos. Já que lá estava e que era, aparentemente, inútil, aceitei partilhar um Martini que Mário me ofereceu, acompanhando-o com uma cigarrilha na varanda das traseiras.
            - Depois de tanto tempo… - disse-me – Não sabes que essas coisas acabam por te matar?
            Senti vontade de lhe explicar que estava basicamente morto. Mas calei-me e respondi apenas que era um passatempo, que todos precisamos de um passatempo, que estava tudo sob controlo e que poderia voltar a parar a qualquer instante. Ele fitou-me com ar de alguma dúvida e uma pancadinha no ombro.
            Nesse momento, entrou Carlos, o filho mais velho do casal, acompanhado da mais recente namorada, uma americana amorenada, de olhos azuis fundos, e deu-me um abraço. Patrícia não tinha, contrariamente a ele, conseguido tirar uns dias para nos visitar, apesar da distância mais curta.
            - Então, tio?
            Apontou para a cigarrilha que me ardia entre os dedos e, como num passe combinado, disse:
            - Isso ainda acaba por te matar!
            - Se fosse a ti, tinha mais cuidado com os aviões low cost em que te enfias… - respondi laconicamente, com um sorriso.
            Antes das duas, estávamos todos à mesa, prontos a trinchar o peru recheado, acompanhado de batata assada e as coisas do costume. Eu, o casal, o casalinho, uns velhos tios e uns primos com os filhos pequenos e difíceis de controlar, que não paravam quietos e exageravam na Coca-Cola, enquanto os adultos se serviam da adega da casa. Senti um desejo secreto de perguntar aos pais se não sabiam que aquilo ainda ia acabar por os matar ou algo no estilo, mas controlei-me. Parecia que a morte estava sempre presente. Para mim estava, com toda a certeza. No entanto, todos falavam, gargalhavam muito alto e os mais inspirados soltavam disparates improvisados, ignorando a contenção maior dos velhos tios. Como se a vida fosse sempre bela e eterna. Sim…
            O televisor estava ligado, passava o noticiário e, a certa altura, uma notícia chamou a atenção dos presentes. Um indivíduo de trinta e três anos, fora encontrado morto na entrada do seu bloco de apartamentos com uma seringa espetada no braço, numa veia do braço esquerdo. Tinham-lhe ainda descoberto diversas doses de heroína e uma certa quantidade de dinheiro, mais do que seria normal. O que mais alertara as autoridades, que já investigavam o caso, fora o facto de que se notava um par de marcas suspeitas no pescoço e ainda que morrera de uma embolia por ter injetado não heroína, mas ar, nada mais do que ar. Poder-se-ia tratar de uma vingança do submundo, algum tipo de luta entre gangues, nada era ainda certo. As filmagens do cadáver enchiam o ecrã, seguidas de testemunhos de indivíduos da zona, ora preocupados, ora indiferentes, ora com aquele sentido de vingança por nada de especial que normalmente se encontra adormecida em tantos… Agarrei a base da minha cadeira energicamente e estremeci.
            - Esta malta não para! De que é que se vão lembrar a seguir? – perguntou Mário, aparentemente chocado .
            - Não fazem cá falta nenhuma! Mais valia que se varressem todos uns aos outros. – sentenciou a tia Mafalda.
            Pedi licença para usar a casa de banho e retirei-me, deixando-os, a eles e aos seus comentários, para trás.

            Abri a porta e encerrei-me à chave no interior. Ainda o conseguia ver entontecido e, logo, inconsciente, tombado ao fundo das escadas como um saco de batatas inútil que, secretamente, me preenchia de raiva e vontade de o canibalizar. O coração acelerou-se-me num estranho déjà vu. Em redor, felizmente, tudo era silêncio. Fitei as minhas mãos de relance… Ocultas por um par de luvas brancas de latex descartável. Uma seringa justiceira. Consegui visualizar-lhe os olhos a revirar e sentir-lhe o derradeiro suspiro. Teria família, pais, filhos, amigos, namorada? Que importava! Eu. Ele. A vida entre nós. E a morte como consequência inevitável. Não pude conter-me e sorri alarvemente perante a imagem. Sorri, quase chorei, sorri de novo, agora ainda mais violentamente, e só quando senti que tudo estava sob controlo reabri a porta cuidadosamente e regressei ao meu lugar na mesa.

            Voltei-me para Mário e exclamei, num tom entusiasmado:
            - Estava a pensar… Um passarinho disse-me que tinhas umas garrafas secretas de Barca Velha. Se não fosse muita ousadia, permitir-nos-ias celebrar a Páscoa com um sangue verdadeiramente digno de Cristo?
            Afigurou-se-me que talvez alguns dos presentes se tenham sentido algo espantados com a minha súbita participação. Mas, após um instante muito breve, o ambiente aquecia e aqueceu ainda mais depois do Barca Velha que Mário, sempre solícito, trouxe da cave e, sobretudo, após o brinde que propus, erguendo o copo bem alto:
            - Longa vida a todos os presentes!
            - Longa vida! – escutou-se num coro.
            Após um gole que me soube pela vida, voltei-me para Carlos e para a namorada, Eileen, que se encontravam face a mim, do outro lado da mesa, e comecei a interrogá-los entusiasticamente, no meio do burburinho geral, acerca do que faziam e não faziam do outro lado do Atlântico.

3.12.18

Ricardo - capítulos X e XI


X

            A morte apanha-nos a todos. E apanha-nos sempre desprevenidos. Mesmo nos casos em que um médico, protegido pela sua bata branca, nos diz “Lamento, mas tem uma semana de vida”. Deve ser o tal instinto de sobrevivência de que sempre falamos. Os últimos instantes devem ser sempre atrozes, mesmo para os mais bem preparados. A surpresa total e absoluta deve ser sempre o fator-chave para cada um. Tinha-me desligado de tanta gente durante a minha vida que não fazia ideia se estavam vivos ou mortos, saudáveis ou doentes, ricos ou miseráveis. Por vezes, vinham-me à ideia em recordações torcidas, mas via-os sempre como os vira no tempo em que os conhecera. Era, na verdade, um vazio, o corte, como se todos tivessem morrido ou passado a viver em dimensões distantes.
            O telemóvel fez soar por instantes aquele toque inconfundível da secção rítmica dos Soul Coughing, também eles relativamente mortos há anos. “Uh zoom zip uh wake up, uh zoom zip…” Atendi o número desconhecido. Era um velho amigo, ainda vivo, pelos vistos, que me anunciava:
            - O pai do Antero morreu e ele pediu-me para te avisar.
            - O pai do Antero? – interroguei, eu mesmo surpreendido – Que idade é que tinha?
            O Lucas passou a idade à frente e explicou:
            - Morreu de cancro dos pulmões. Tinha fumado a vida inteira. – curiosamente, após dez anos inteiros de abstinência, eu mesmo dera comigo de regresso às minhas cigarrilhas favoritas - Acho que passou uns últimos tempos muito difíceis. Imaginas. Difícil para todos. Mas o sofrimento acabou, pelo menos isso…
            - Sim…
            - O funeral vai ser amanhã às duas da tarde e o Antero iria apreciar muito a tua presença.
            - Hmm… - procurei um motivo qualquer de impedimento mas, assim de repente, não o encontrei – Sim. Claro. E tu, que é feito de ti?
            - Pá, comigo está tudo bem. Depois falamos. Amanhã, às duas, ok? Ainda tenho que fazer mais alguns contactos.
            - Está bem. Claro, contem comigo. Por favor, dá-lhe os meus sentimentos se, entretanto, falares com ele.

            No dia seguinte, às duas, chovia por todo o inverno interminável. Os enormes portões do cemitério, com manchas avermelhadas da passagem do tempo no ferro forjado, encontravam-se abertos de par em par para deixar passar o cortejo, um bando de corvos nigérrimos, de cabeça tombada. O vento indignado parecia pretender derrubar todas as árvores que ladeavam os caminhos, as campas alagadas, as poças exageradas que, pelo caminho de terra, nos salpicavam e enlameavam sem piedade. Caminhávamos lentamente, num silêncio fundo, intercalado de sussurros. Na dianteira, quatro gatos-pingados carregavam o caixão que a atmosfera geral escurecia mais. Fitei Antero, a quem já dera os meus sentimentos. Parecia-me visivelmente abatido. Um choro baixo e desesperado da viúva, de braço dado com o filho, ritmava, ocasionalmente, a marcha. E a tempestade não dava sinais de abrandar.

            No final, dirigimo-nos, um grupo, a um centro comercial próximo. Meia dúzia de nós. Que amigos tínhamos sido em tempos! Pela atmosfera geral, era como se tivesse sido no dia anterior. Pessoalmente, no entanto, sentia-me deslocado, talvez tivesse sido eu que me afastara inexoravelmente… A mera mudança de local e a chuvada presa no exterior despertavam sorrisos e piadas que me apercebi recordar ainda com nitidez. Tinha passado tanto tempo a fugir… Talvez… Dedicara-me, anos a fio, a Ricardo e, isso assustava-me, muito fundamentalmente ao esconderijo da construção de uma carreira. Pareceu-me que o mundo passara ao lado da minha bolha. Principalmente nos últimos anos desligara-me da corrente. Assustava-me, sim, porque senti que me tinha, de certa forma, desligado também de Ricardo quando talvez tivesse sido importante ele ter-me tido mais por perto. Quando era mais novo, éramos confidentes, os melhores amigos do mundo. Depois, não sei. Achara que era ele que se afastava e que tinha que lhe dar espaço e, afinal, talvez não tivesse passado de um terrível erro de julgamento.
            - Sentem-se nessa mesa, malta! Quem quer café?
            Regressei ao momento presente. Todos quisemos. Não sei dos outros, eu já tomara um café logo após o almoço, foi mais para acompanhar o ritmo geral. Contaram-se histórias em tom leve, daquelas que não elucidam nada nem ninguém mas servem para nos manter acordados. Um de nós, o Luís, parecia-me particularmente excitado. Passou a mão por meia dúzia de pelos na minha garganta, que só barbeava ocasionalmente para que não começassem a surgir mais fortes e, quem sabe, não surgissem outros ainda até passar a ter que barbear a garganta toda como um homem-macaco e exclamou:
            - Meu, a minha mulher já te tinha obrigado a cortar essa coisa!
            Podia ter-lhe explicado os meus motivos, mas o que se me escapou foi um sorriso amarelo. Pois…
            Parecia-me mesmo muito entusiasmado para quem voltava de um funeral… De repente, soltou o que, provavelmente, ainda lhe não saíra da cabeça:
            - Pessoal, saímos daqui, vamos no meu carro até à beira-mar e fumamos um tarolo à maneira. Tenho aqui erva de primeira!
            Obviamente, não se importava absolutamente nada com o que, nas mesas em redor, alguém pudesse captar. Daí em diante, foi tarolo para aqui, tarolo para acolá… Confesso que nem conhecia o termo, tarolo, não creio que fosse do meu tempo. A certa altura, pediu licença, que tinha que ir à casa de banho. Retirou-se por uns momentos e regressou com o mesmo ar animado. Sentou-se e recomeçou a falar em irmos embora fumar um tarolo. A minha vontade era nula, não se tratava de algo que apreciasse particularmente. Nessa altura, Lucas, que o olhava de frente, dirigiu-se-lhe discretamente:
            - Pá, trazes um bocado de pó branco agarrado à narina…
            Luís limpou rapidamente o nariz com as costas da mão, inspirou ruidosamente e, como se de nada se tratasse, retomou a história de irmos à beira-mar, no carro dele, fumar um tarolo. Nunca tinha visto ninguém tão transbordante de autoconfiança… Ou sequer com tanta vontade de fumar um “tarolo”.
            À saída, de regresso à tempestade que não abrandara, como não abrandava a pressão que Luís exercia sobre o grupo, desculpei-me com um trabalho que deixara a meio e afastei-me com a promessa vaga de nos reencontrarmos todos em breve. Os outros seguiram Luís até ao carro e suponho que tenham ido à beira-mar fumar o tal tarolo. Ao vê-los afastarem-se, o dia pareceu-me ainda mais sombrio. A atitude maníaca de Luís remoía-me as entranhas. Só eu estava plenamente consciente do facto e, muito provavelmente, solitário nesse aspeto.

            De regresso ao vazio fundo do lar que deixara fundamentalmente de o ser, só não estava certo há quanto tempo exatamente, liguei o computador e, teimosamente, forcei o teclado a repetir: Importing guns from the USA to Portugal, Buying guns in the USA, Buying guns in Europe… Era frustrante e já o deveria saber. Um aparente beco sem saída. Saquei de uma cigarrilha, acendia-a, inspirei o fumo azul, lancei a cabeça para trás e suspirei. Como diabo é que se arranjavam armas nesta terra?
            Recomecei… Não se desiste assim. Modifiquei os termos da pesquisa. Não tardou, fiquei pelo menos, a saber que a net disponibilizava toda uma gama de tutoriais sobre como construir um silenciador. Carregados de avisos sobre a ilegalidade da coisa, mas o facto é que ninguém tinha apagado os filmes ou as páginas passo a passo. Era como começar uma casa pelo telhado, mas vá… Como tirar medidas, que materiais arranjar, como assinalar locais para buracos que qualquer Black & Decker faria, criar uma cobertura, uma espécie de tampa, tudo. Melhor que nada. Eu conseguiria fazê-lo. E armas? Uma pistola suficientemente pequena para caber discretamente num bolso e, no entanto, eficaz? Munições? Pesquisei no fundo da memória dos meus tempos de tropa… Era possível que o passado me guardasse respostas para o presente. Salvo, claro está, onde e como arranjar o que pretendia. Importar estava fora de questão. E as lojas de armas, tanto quanto sabia, não vendiam nada de sequer remotamente adequado. Ainda por cima, já tinha percebido como seria difícil justificar um pedido de licença de porte de arma. Bom, uma licença era, na realidade, o que menos se ajustava à missão que, cada vez mais, sentia precisar de levar a cabo.
            Servi-me de um whisky, como já vinha sendo hábito, sorvi um pequeno gole e, não sei por que golpe de clarividência, caí em mim. Os silenciadores da net eram, obviamente, pelos materiais usados, por tudo, extremamente fracos; talvez por isso estivessem na net. O telhado sem casa que o sustentasse desabou-me em cima, como não podia deixar de ser. Aquilo de que andava à procura seria, talvez, uma 6.35, mas recordei-me de uma conversa que tivera com um amigo ou conhecido de outros tempos, tipo pouco recomendável ou, pelo menos, dúbio: o que se arranjava no mercado negro eram armas que, a qualquer momento, por serem transformadas ou meras velharias, nos poderiam explodir na cara. Para mais e não menos importante, não tinha a mínima ideia de como comprar o que quer que fosse no mercado negro, onde quer que ele se situasse. Finalmente, não seria nada boa ideia deixar marcas indeléveis do que se me insinuava levar a cabo e, quase certamente, terminar os meus dias potencialmente úteis numa cela, à mistura com um bando de tipos estranhos que me forçassem a transformar-me numa tentativa de sobreviver. Levei a mão à cabeça e despenteei-me inadvertidamente num gesto rápido.
            Estava de volta à estaca zero.

            Quando me preparava para mais uma noite de sono simultaneamente branco e inquieto, algo me impeliu a, no caminho, regressar ao quarto que fora, era e sempre seria de Ricardo. Liguei o interruptor, entrei, olhei em volta incerto do que procurava e comecei a remexer nas gavetas que sempre respeitara até então. Estava tentado a retirar-me. Talvez esperasse encontrar restos da droga que pusera fim aos sonhos que o meu filho pudesse, algum dia, ter acalentado. Se aplicasse uma dose excessiva a mim mesmo, seria a forma mais fácil de pôr um ponto final no meu tormento, juntando-me a quem amara para a eternidade. Disparate perfeito, claro. Sabia que não o faria. Faltavam-me a coragem e a lógica em simultâneo. Por todo o lado, entretanto, não encontrei mais do que banalidades que me magoavam pelo simples facto de existirem ou, de alguma forma, já terem existido. Roupas. Fotos. CDs. Livros. Revistas. Tudo o que se poderia encontrar em qualquer quarto de qualquer jovem. Subitamente, um objeto metálico, no fundo da última gaveta que me preparava para fechar, captou-me a atenção. Afastei todos os objetos que lhe barravam o caminho e agarrei-o, primeiramente hesitante e, de seguida, mais fortemente… Era aquilo a que, normalmente, chamamos um taser. Onde diabo é que ele arranjara aquilo e em nome de que deus? Durante largos momentos, fitei-o, equilibrado sobre a minha mão em concha. Instintivamente, pressionei um botão e vi nascer uma espécie de faísca. Larguei o botão e repeti o gesto um par de vezes.
            Uma ideia começou a nascer em mim…





























XI

            Andei uns tempos a remoer na ideia…
            Por fim, certo dia, dei comigo a combinar um jantar com Lucas, tal como nos velhos tempos, para os reviver um pouco. Na verdade, não. Pretendia obter informações acerca de Luís e, como não o tinha na minha lista de contactos, achei que Lucas poderia servir bem como informador desapercebido. O jantar correu bem. Comemos bem, bebemos melhor, conversámos como se nos encontrássemos todas as semanas e, no final, quando nos despedimos, já tinha o que pretendia, para além da confirmação de que Luís estava com um problema de coca e a certificação de que a coisa era preocupante e não dava sinais de parar.

            - Luís?
            - Quem fala?
            - É o Miguel, meu. O Miguel Andrade. Lembras-te de mim ou já me esqueceste?
            - Oh, Miguel! – Luís passou instantaneamente do tom formal para o entusiasmo excessivo que o caracterizava – Então, que contas? Queres marcar um café, qualquer coisa? – Facilitava-me a vida. Como calculara, não precisara de dar muitas voltas à conversa nem de nenhum tipo de explicação relativamente elaborada para marcar um encontro. Ele era assim, o perfeito bom rapaz, infelizmente sempre pronto a fazer algum tipo de disparate por excesso de otimismo. No entanto, acabava sempre por aterrar de pé, como se alguma fada madrinha lhe tivesse concedido o dom da boa fortuna nos tempos mais remotos da sua existência. Pessoalmente, não estava tão certo de que a sorte pudesse durar eternamente, era naturalmente mais pessimista, ou realista, embora nunca saibamos exatamente onde começa uma e termina a outra coisa, já que só Deus, os deuses, o acaso ou as fadas madrinhas detêm o segredo desses mistérios. De certeza que ele não concordaria.

            Encontrámo-nos num sábado nublado ao início da tarde. Tomámos o nosso café. Felizmente, não começou com a conversa dos tarolos ou o diabo… Caso contrário e para manter o clima, ainda me poderia ter visto forçado a tirar, pelo menos, um par de passas e o facto é que, para mim, não para muitos, mas certamente para mim, seria como ser tratado por um acupuncturista com Parkinson. Bom, gostos não se discutem, mas preferi assim. Conversámos e conversámos, sobretudo acerca dos velhos tempos, mas não só…
            - Meu, sabes que descobri a forma de ganhar milhões facilmente? – O olhar de Luís fixou-me de modo vibrante, aguardando uma resposta. Pausei brevemente e fiz-lhe a vontade, forjando curiosidade:
            - Ganhar milhões, hmm? Suponho que não estejas a falar no euromilhões…
            Luís inclinou-se na mesa e entusiasmou-se:
            - Sim, pá, milhões. – exprimia-se muito rapidamente – O futuro está nos carros elétricos. Sabes muito bem que o petróleo se vai esgotar. Tenho andado a pensar nisso e tenho cada vez mais a certeza que se arranjar investidores à altura, posso ganhar quanto quiser a fabricar carros elétricos. É fácil, na verdade. Contra factos não há evidências e quem for esperto vai apostar na ideia sem hesitações. Para mais, vamos ser pioneiros e isso dá-me todas as vantagens!
            - Pois. Já ouviste falar dos Teslas?
            Luís ignorou-me totalmente e interrogou:
            - Então? Que achas? De certeza que muitos desses nabos que para aí andam e que se consideram grandes industriais teriam gostado de ter tido a ideia. Mas as ideias não surgem à toa, é preciso pensar. – Levou o indicador à têmpora e abriu-se num enorme sorriso.
            - Então, achas que fabricar carros elétricos é a solução, hã? Mas, olha, as baterias são todas fabricadas na China. Isso não te complica um bocado a vida?
            Ponderou não mais que um instante e concluiu:
            - Ó pá, pois é. Se calhar, tenho que ir fazer um estágio na China para aprender o modus operandi deles e fazer contactos!
            Mas adiante, conversa aqui, conversa ali, não tinha decorrido muito, com mais cautelas do que as que provavelmente teriam sido necessárias, convencera-o a levar-me consigo numa das suas aquisições de cocaína. Sem sequer grandes interrogações. Ele encarava aquilo como uma aventura e não se importava de a partilhar comigo. Concluí, e já desconfiava, que frequentava o tal bairro, não muito longe de casa da Joana. Não paguei a conta porque ele me impediu, saímos para a rua e entrámos no seu automóvel, um Audi rebrilhante no seu cinzento metalizado. Partimos em excesso de velocidade, como caminhavam em excesso de velocidade os zombies que circundavam a pé, nas suas gangas desmazeladas e sapatos gastíssimos de tantas maratonas, a zona para onde nos dirigíamos.