Escrevi este romance, que dedico à Luísa, ao Alexandre, à minha mãe, ao meu pai, à minha avó materna, ao meu saudoso primo e amigo Filipe e ainda a todas as vítimas do uso de drogas, em 2014.
Foi fácil de escrever porque o escrevi, quase diria, em modo de escrita automática. Poderia bem tê-lo alongado, mas preferi cingir-me ao necessário e esquivar-me à costumeira palha.
Não tendo sido acolhido pelas pouquíssimas editoras nacionais que não cobram a edição ao próprio autor, não acompanhando, posteriormente e de forma eficaz, qualquer tipo de promoção digna desse nome, sinto que está na altura de o partilhar.
As personagens apresentadas no romance são ficcionais, assim como os factos e locais contidos na narrativa, e não manifestam semelhanças reais com quaisquer pessoas, vivas ou mortas.
Publicarei, semanalmente, um capítulo. Espero que o apreciem tanto como apreciei escrevê-lo.
Jorge Simões
I
Toda a gente sabe que as coisas
raramente correm como desejamos ou mesmo contamos. Por vezes, porém, a vida
toma rumos tão inesperados que nem Deus Pai, com toda a sua omnisciência, seria
capaz de as conhecer. Ou não é bem assim e o Todo-poderoso brinca com as nossas
vidas sem pensar duas vezes porque não passamos de bonecos e os bonecos
fazem-se para usar antes de acabarem na recolha do lixo. Ou para se
colecionarem e ficarem arrumados numa prateleira de coleção infantilizada, à
espera do próximo inquilino que chegue para os deitar fora. Muitas vezes, a
maioria das vezes, penso, os novos inquilinos ou não-inquilinos, são a nossa
descendência e já têm demasiada tralha para arrumar, não podem sobrecarregar os
cérebros com preocupações que os acompanhem eternidade fora enquanto durar.
Diz-se que Deus escreve direito por linhas tortas. Nunca entendi muito bem essa
noção. Mas gostamos de acreditar que nada acontece por acaso, que tudo tem uma
razão de ser, que no final tudo se justifica. Como nos filmes. Ou em grande
parte deles, sobretudo os que vendem bem. Têm que ir contar essa a todos os
desgraçados em todas as partes do mundo! Provavelmente concordarão. A verdade é
que todos precisamos de esperança. E quando a esperança se esgota, o que sobra
então?
O meu filho tinha dezassete anos,
chamava-se Ricardo, um nome que só a mim interessa, porque há muitos Ricardos
pelo mundo fora e os outros Ricardos, francamente, pouco me interessam; espero
que sejam felizes e não chateiem. Chamava-se Ricardo porque deixou de se chamar
demasiadamente cedo. O meu Ricardo… Era um bom menino. Recordo-me bem. Tinha um
bom coração e é pelo coração que as pessoas, em larga medida, devem ser
medidas. No que me toca, pelo menos, tinha um bom coração.
A mãe partiu tinha ele menos de dois
anos, após uma luta contra um cancro da mama agressivo que me deixou extenuado
e incrédulo. Coube-me a mim a tarefa de o educar. Para ele, tudo não passou de
uma névoa saudosa como os mitos em geral. Eu, sozinho, com as obrigações
crescentes do dia-a-dia e o Ricardo, primeiro criança, depois menos criança,
depois menos criança ainda e criança no entanto. Cá nos arranjámos como sempre
tudo se arranja. Era um miúdo feliz, entretinha-se bem mesmo quando
desacompanhado e gosto de me lembrar de quando me saltava para o colo num gesto
genuíno de anjo incontaminado. Gosto de me lembrar de quando representava todas
as minhas esperanças vagas e me fazia pensar que, no fim de contas, tudo valia
a pena e talvez houvesse uma razão para tudo. Nesses tempos idos, ainda não me
apercebera de que o tempo passaria e ele mesmo passaria com o tempo, porque
tendemos a viver o futuro no presente e é isso que nos parece real.
Estava um dia quente de verão. A
manhã durava já há horas e Ricardo, enfiado no seu quarto, não dera ainda sinal
de si. Comecei a olhar para o relógio preocupadamente. Eram três da tarde, já
manhã demais, e o seu quarto mantinha-se em pesado silêncio. Que diabo, a hora
do almoço já se atrasara mais do que o habitual! Bati-lhe à porta
cuidadosamente. Nada. Bati de novo, um pouco mais energicamente. Zero.
Ponderei… Abri a porta com cuidado. No interior, havia uma semipenumbra;
Ricardo não gostava de fechar a persiana por inteiro.
Depois, como um raio súbito e
inesperado numa tempestade seca, senti uma tontura e tive que me segurar à
parede para não cair. O coração saltou-me à boca. A minha vida inteira
desmoronou-se de uma só vez como os castelos de cartas que o meu Ricardo
gostava de construir quando era pequeno. Filho!
Sobre a mesa-de-cabeceira simples
jaziam, abandonados, desarrumados, meio limão, uma colher oxidada e uma prata.
Ricardo, o meu filho Ricardo, em quem depositara todas as esperanças do
passado, presente e futuro, mantinha-se rígido sobre os lençóis. Os olhos
estavam revirados, um pouco como nas imagens tradicionais de certos santos. Nos
lábios onde em tempos nasciam tantos sorrisos e gargalhadas, secava-se-lhe uma
mistura ignóbil de sangue e espuma. Uma seringa hipodérmica pendia-lhe do braço
esquerdo, perto de um garrote improvisado e de uma pequena tatuagem que eu
nunca entendera e que ele nunca conseguira explicar-me de forma que eu
entendesse, e um fio de sangue seco que escorrera tingia o branco do linho de
um vermelho escuro como todas as violências que tentamos julgar só existirem em
outros mundos. Como tinha sido possível não ter sabido? Ou ter-me recusado a
saber?
Um forte aperto no coração
impediu-me de chorar, gritar ou sequer gesticular e, por instantes, senti que
ia ter um ataque cardíaco. Corri para Ricardo e abracei o que dele restava. Era
pouco. Pouco mais, no fundo, do que memórias selecionadas…