VIII
Ricardo frequentava uma escola
secundária e não reprovara um só ano. Causava-me alguma confusão que consumisse
drogas duras, sabia-o agora, e que, simultaneamente, mantivesse um percurso
escolar regular. Era verdade que as notas tinham decaído um pouco face ao que
já tinham sido, mas eu atribuía o facto a alguma falta de trabalho – e quantas
vezes não o massacrei à conta disso! –
somada à maior complexidade das matérias. Verdade, verdade, é que nunca me
apresentara um resultado negativo. Como poderia eu ter desconfiado? Ainda para
mais, o rapaz disfarçava tão bem como os melhores atores! Parecia-me cansado…
Uma vez mais, no entanto, eu atribuíra o facto, se não ao estudo aturadíssimo,
pelo menos à dificuldade das matérias. É verdade que saía à noite e regressava,
frequentemente, quando eu já dormia. Mas, tinha eu considerado, era já normal
aos dezassete anos. Bom, não tinha achado fabuloso, mas tinha-me adaptado.
Temos que saber deixar os filhos crescer. Nunca nada me causara desconfiança.
Talvez tivesse confiado demasiadamente… Talvez andasse tão ocupado com a minha
própria vida profissional que não chegara a dar por nada… Em suma, talvez
andasse demasiado distraído! Essas ponderações causaram-me um enorme sentimento
de culpa. Que poderia eu ter feito para evitar o desfecho? Talvez tudo. Talvez
nada. Talvez alguma coisa. O suficiente? A verdade é que não havia, agora, nada
a fazer. Não, nada a fazer para evitar o que já tinha acontecido. Não era isso,
certamente, que me diminuía o sentimento de culpa que então me assolava.
Sabia que havia problemas com drogas
leves, as chamadas drogas leves, aquelas que se consideram recreativas, que
parecem não passar de uma mera fase cada vez mais socialmente aceite, em todas
as escolas. Com certeza que a escola de Ricardo não constituiria a exceção à
regra. Nunca achei, no entanto, que o meu filho se deixasse envolver nesses
meandros. Não digo que não tenha alguma vez imaginado que já experimentara
algo, é a idade das experiências, mas nunca dei a isso a importância que, no
fim de contas, deveria ter dado. Culpa minha, ainda que não devesse arcar com
as culpas do mundo. Mas o filho tinha sido meu, não do mundo. Lançado ao mundo,
sim… Como todos os que nascem. Caramba, a culpa tinha sido minha! Como é
possível abstrairmo-nos tanto do que temos debaixo do nosso próprio teto? Será
que só quando nos cai em cima percebemos que houve algo de errado na
construção? Soltei o maior suspiro da minha vida.
Dirigi-me precisamente à escola que
Ricardo frequentara. Por um lado, era uma tarefa dolorosa. Por outro, precisava
de observar. Tentar compreender
algo
mais.
Tão discretamente quanto me foi
possível, porque, francamente, não sei
até
que ponto conseguimos tal nível de discrição e eu sentia os olhos dos
professores e alunos que saíam durante os intervalos para um cigarro, assim
como dos funcionários a espreitar pelas frinchas e pelos gradeamentos mesmo não
o fazendo. Quem sabia se a própria Direção não se apercebia de algo estranho?
Para não mencionar as passagens rotineiras da Escola Segura. Tornava-se
complicado. Na minha cabeça, o mundo inteiro observava-me. Fora de mim, creio
que me ignoravam. Mas era eu quem não podia deixar de observar. Assim
decorreram vários dias, a diferentes horas, absurda estratégia que concebi para
não dar nas vistas.
A escola localizava-se junto a um
descampado, numa rua sem casas. Ao fundo, junto a um grupo de moradias
isoladas, havia um pequeno beco que não sabia onde desembocava. O que, por
algum motivo, mais me chamou a atenção, sobrepondo-se aos disparates normais e
próprios daquelas idades, aos empurrões, aos chorrilhos de calão, à gíria
jovem, aos gritos contínuos que se ouviam, como se fossem todos surdos ou só
conseguissem exprimir-se em gritarias, foi a forma como grupos de jovens se
enfiavam regularmente beco dentro e de lá regressavam com um ar estranhamente
bem-disposto. Pelo menos, assim me pareceu. Assisti à romaria vezes sem conta.
Que diabo é que iam fazer ao fundo daquele beco? Provavelmente nada de
especial, mas eu tinha que saber…
Vi um grupo de rapazes e raparigas
que seguiram em direção ao beco. Esfreguei os olhos, quase que raciocinei e
simplesmente tranquei o carro e segui-os, discretamente, à distância.
Encostei-me a uma esquina, de modo a
que ninguém desse por mim. Observei pelo canto do olho. O beco ia dar a uma
espécie de pequeno campo ou clareira. Vi, sentado numa pedra, um jovem, quase
tão jovem como eles. Era magro e esboçou um sorriso falso quando viu o grupo e
se ergueu lentamente. Trocaram algumas palavras excessivamente indistintas para
que as pudesse compreender. Um dos jovens passou-lhe uma nota e recebeu algo em
troca. Todos riam, excitados com a prevaricação. Só o rapaz se voltara a sentar
e ria menos. Como eu, parecia observar com algum cansaço daquilo que deveria
ser uma repetição muito repetida. Ó mano!..., qualquer coisa, não consegui
entender o resto, gritou-lhe um rapaz. E ele sorriu de volta. Não tardou,
estavam a enrolar um charro, era inconfundível. Todos eles excitados. Contive
um suspiro e afastei-me rapidamente, antes que alguém pudesse descortinar-me.
Dei um par de voltas, para cima e
para baixo, numa rua transversal, e vi-os regressar e desaparecer muito
alegremente para o interior do portão da escola.
Apressei-me de volta ao beco, na
esperança de ainda lá encontrar o dealerzito.
Pelo caminho, atabalhoadamente, apanhei um pedaço de madeira forte do chão.
Intuitivamente, sabia o que tinha que fazer. Estuguei o passo. O rapaz
erguera-se e preparava-se para desaparecer pelo lado oposto do pequeno
descampado. Pareceu-me demasiadamente calmo e indiferente e, de alguma forma, isso
enfureceu-me.
Impensadamente, agarrei-o pela parte
de trás do colarinho do blusão que vestia e derrubei-o com violência. Aterrou
no chão como um saco morto. Deve ter-se sentido extremamente surpreendido.
Quando dei por mim, ele rebolava-se no chão de terra sob o impulso furioso das
pauladas que eu lhe infligia no rosto, na cabeça, no peito, nas costas, nas
pernas…
- Ei! – exclamava – que é que me
quer?
Eu continuava a malhar, quase
cegamente, e no entanto tão certeiro, até que o rapaz, rasgado e ensanguentado,
se calou, como que aceitando tacitamente aquele destino. Pausei por segundos e
quase tive pena dele. Desferi-lhe uma última paulada em cheio no rosto e lancei
o toco de madeira para uns arbustos. O rapaz quase não se movia, provavelmente
ainda à espera do golpe seguinte. Levei as mãos à cintura e inspirei fundo.
- Não chegas a ser nada! Não vales a
pena! – rosnei com toda a raiva que a minha vida continha.
Logo de seguida, voltei costas,
regressei ao automóvel e arranquei como se nada tivesse sucedido. Só me
ocorriam, em imagens intermitentes, visões da cena que presenciara, à noite,
junto ao semáforo vermelho. Na minha mente, a criança do banco traseiro ainda
não parara de chorar nem de arranhar inutilmente o vidro…
IX
Pela primeira vez, ganhei coragem
suficiente para percorrer as fotos e pequenos filmes de Ricardo que fora
acumulando no computador. Sabia que não passavam de imagens, bits e bytes, mas
guardavam algo que efetivamente existira em momentos quebrados entre si. Mesmo
a memória, talvez mais importante do que qualquer gravação de qualquer tipo,
liquefaz-se e engana-nos com a passagem do tempo. Era, em todo o caso, o que de
mais palpável dele me restava…
E o que dele me restava revelou-se
uma estranha mistura da mais profunda dor do universo com uma espécie de
indiferença face ao que não podemos alterar e que, por isso mesmo, por se
tratar de algum mecanismo de defesa ou mesmo de indiferença, e se era
indiferença não podia ser pior, inundava a casa inteira daquela dor que,
estoicamente e de modo quase masoquista, desenrolei até ao fim.
O Ricardo ainda pequeno, com um
hambúrguer sobre uma mesa do McDonald’s, embebendo batatas fritas num daqueles
molhos pouco saudáveis que eles vendem. O Ricardo sorrindo aquele sorriso
totalmente honesto e aberto que só as crianças conhecem, diante de um pinheiro
de Natal que eu montara e enfeitara só para ele, já que, para mim e só para
mim, o Natal passara a ser mais indiferente do que um gato morto na berma da
estrada. O Ricardo, numa pose heroica, com o braço sobre o ombro de um
amiguinho da escola. O Ricardo, já com os seus dez anos, sentado à mesa de
Joana, contrariado com a refeição que lhe desagradava. O Ricardo, aos catorze,
deixando-me tirar-lhe uma foto por especial favor, numa fase em que decidira
não gostar de fotografias.
Pausei, fui buscar a garrafa de
whisky, servi-me, bebi de um trago e servi-me de novo.
O pequeno Ricardo na praia, em pose
de homem musculoso. O Ricardo equilibrando-se na bicicleta que lhe oferecera
pelo seu nono aniversário. O Ricardo jogando à bola no pátio com os amiguinhos.
O Ricardo, rodeado de familiares e amigos, soprando as velas no seu
décimo-quinto aniversário. A partir daí, as fotos deixaram de existir. Talvez
por culpa minha, por ter deixado de me preocupar em guardar o tempo em pequenos
retângulos coloridos, erradamente convencido de que o tempo era coisa
duradoura.
Engoli o que restava de whisky no
fundo do copo e encerrei o computador. Uma lágrima teimosa, a contragosto,
deslizou-me pelo rosto. Limpei-a com a palma da mão aberta, respirei tão fundo
quanto pude e subi para me deitar.
Nessa noite, mesmo antes de
adormecer, arrisquei e pedi a Deus que me permitisse contactar com Ricardo em
sonhos…
- Ricardo, porquê?
- Por nada.
- Por nada, como?
- Por nada mesmo. Desculpa, pai.
Quis saber como era.
O facto é que, embora consciente de
que todos sonhamos quando dormimos e que não há quem não sonhe, acordei, uma
vez mais, com a sensação de uma noite em branco. Nem Deus me valia. Talvez não
existisse. Se não existisse, também não podia culpá-lo de nada. Que vazio…