26.11.18

Ricardo - capítulos VIII e IX


VIII

            Ricardo frequentava uma escola secundária e não reprovara um só ano. Causava-me alguma confusão que consumisse drogas duras, sabia-o agora, e que, simultaneamente, mantivesse um percurso escolar regular. Era verdade que as notas tinham decaído um pouco face ao que já tinham sido, mas eu atribuía o facto a alguma falta de trabalho – e quantas vezes não o massacrei à conta  disso! – somada à maior complexidade das matérias. Verdade, verdade, é que nunca me apresentara um resultado negativo. Como poderia eu ter desconfiado? Ainda para mais, o rapaz disfarçava tão bem como os melhores atores! Parecia-me cansado… Uma vez mais, no entanto, eu atribuíra o facto, se não ao estudo aturadíssimo, pelo menos à dificuldade das matérias. É verdade que saía à noite e regressava, frequentemente, quando eu já dormia. Mas, tinha eu considerado, era já normal aos dezassete anos. Bom, não tinha achado fabuloso, mas tinha-me adaptado. Temos que saber deixar os filhos crescer. Nunca nada me causara desconfiança. Talvez tivesse confiado demasiadamente… Talvez andasse tão ocupado com a minha própria vida profissional que não chegara a dar por nada… Em suma, talvez andasse demasiado distraído! Essas ponderações causaram-me um enorme sentimento de culpa. Que poderia eu ter feito para evitar o desfecho? Talvez tudo. Talvez nada. Talvez alguma coisa. O suficiente? A verdade é que não havia, agora, nada a fazer. Não, nada a fazer para evitar o que já tinha acontecido. Não era isso, certamente, que me diminuía o sentimento de culpa que então me assolava.
            Sabia que havia problemas com drogas leves, as chamadas drogas leves, aquelas que se consideram recreativas, que parecem não passar de uma mera fase cada vez mais socialmente aceite, em todas as escolas. Com certeza que a escola de Ricardo não constituiria a exceção à regra. Nunca achei, no entanto, que o meu filho se deixasse envolver nesses meandros. Não digo que não tenha alguma vez imaginado que já experimentara algo, é a idade das experiências, mas nunca dei a isso a importância que, no fim de contas, deveria ter dado. Culpa minha, ainda que não devesse arcar com as culpas do mundo. Mas o filho tinha sido meu, não do mundo. Lançado ao mundo, sim… Como todos os que nascem. Caramba, a culpa tinha sido minha! Como é possível abstrairmo-nos tanto do que temos debaixo do nosso próprio teto? Será que só quando nos cai em cima percebemos que houve algo de errado na construção? Soltei o maior suspiro da minha vida.

            Dirigi-me precisamente à escola que Ricardo frequentara. Por um lado, era uma tarefa dolorosa. Por outro, precisava de observar. Tentar compreender
algo mais.
            Tão discretamente quanto me foi possível, porque, francamente, não sei
até que ponto conseguimos tal nível de discrição e eu sentia os olhos dos professores e alunos que saíam durante os intervalos para um cigarro, assim como dos funcionários a espreitar pelas frinchas e pelos gradeamentos mesmo não o fazendo. Quem sabia se a própria Direção não se apercebia de algo estranho? Para não mencionar as passagens rotineiras da Escola Segura. Tornava-se complicado. Na minha cabeça, o mundo inteiro observava-me. Fora de mim, creio que me ignoravam. Mas era eu quem não podia deixar de observar. Assim decorreram vários dias, a diferentes horas, absurda estratégia que concebi para não dar nas vistas.
            A escola localizava-se junto a um descampado, numa rua sem casas. Ao fundo, junto a um grupo de moradias isoladas, havia um pequeno beco que não sabia onde desembocava. O que, por algum motivo, mais me chamou a atenção, sobrepondo-se aos disparates normais e próprios daquelas idades, aos empurrões, aos chorrilhos de calão, à gíria jovem, aos gritos contínuos que se ouviam, como se fossem todos surdos ou só conseguissem exprimir-se em gritarias, foi a forma como grupos de jovens se enfiavam regularmente beco dentro e de lá regressavam com um ar estranhamente bem-disposto. Pelo menos, assim me pareceu. Assisti à romaria vezes sem conta. Que diabo é que iam fazer ao fundo daquele beco? Provavelmente nada de especial, mas eu tinha que saber…

            Vi um grupo de rapazes e raparigas que seguiram em direção ao beco. Esfreguei os olhos, quase que raciocinei e simplesmente tranquei o carro e segui-os, discretamente, à distância.
            Encostei-me a uma esquina, de modo a que ninguém desse por mim. Observei pelo canto do olho. O beco ia dar a uma espécie de pequeno campo ou clareira. Vi, sentado numa pedra, um jovem, quase tão jovem como eles. Era magro e esboçou um sorriso falso quando viu o grupo e se ergueu lentamente. Trocaram algumas palavras excessivamente indistintas para que as pudesse compreender. Um dos jovens passou-lhe uma nota e recebeu algo em troca. Todos riam, excitados com a prevaricação. Só o rapaz se voltara a sentar e ria menos. Como eu, parecia observar com algum cansaço daquilo que deveria ser uma repetição muito repetida. Ó mano!..., qualquer coisa, não consegui entender o resto, gritou-lhe um rapaz. E ele sorriu de volta. Não tardou, estavam a enrolar um charro, era inconfundível. Todos eles excitados. Contive um suspiro e afastei-me rapidamente, antes que alguém pudesse descortinar-me.
            Dei um par de voltas, para cima e para baixo, numa rua transversal, e vi-os regressar e desaparecer muito alegremente para o interior do portão da escola.
            Apressei-me de volta ao beco, na esperança de ainda lá encontrar o dealerzito. Pelo caminho, atabalhoadamente, apanhei um pedaço de madeira forte do chão. Intuitivamente, sabia o que tinha que fazer. Estuguei o passo. O rapaz erguera-se e preparava-se para desaparecer pelo lado oposto do pequeno descampado. Pareceu-me demasiadamente calmo e indiferente e, de alguma forma, isso enfureceu-me.
            Impensadamente, agarrei-o pela parte de trás do colarinho do blusão que vestia e derrubei-o com violência. Aterrou no chão como um saco morto. Deve ter-se sentido extremamente surpreendido. Quando dei por mim, ele rebolava-se no chão de terra sob o impulso furioso das pauladas que eu lhe infligia no rosto, na cabeça, no peito, nas costas, nas pernas…
            - Ei! – exclamava – que é que me quer?
            Eu continuava a malhar, quase cegamente, e no entanto tão certeiro, até que o rapaz, rasgado e ensanguentado, se calou, como que aceitando tacitamente aquele destino. Pausei por segundos e quase tive pena dele. Desferi-lhe uma última paulada em cheio no rosto e lancei o toco de madeira para uns arbustos. O rapaz quase não se movia, provavelmente ainda à espera do golpe seguinte. Levei as mãos à cintura e inspirei fundo.
            - Não chegas a ser nada! Não vales a pena! – rosnei com toda a raiva que a minha vida continha.
            Logo de seguida, voltei costas, regressei ao automóvel e arranquei como se nada tivesse sucedido. Só me ocorriam, em imagens intermitentes, visões da cena que presenciara, à noite, junto ao semáforo vermelho. Na minha mente, a criança do banco traseiro ainda não parara de chorar nem de arranhar inutilmente o vidro…
























IX

            Pela primeira vez, ganhei coragem suficiente para percorrer as fotos e pequenos filmes de Ricardo que fora acumulando no computador. Sabia que não passavam de imagens, bits e bytes, mas guardavam algo que efetivamente existira em momentos quebrados entre si. Mesmo a memória, talvez mais importante do que qualquer gravação de qualquer tipo, liquefaz-se e engana-nos com a passagem do tempo. Era, em todo o caso, o que de mais palpável dele me restava…
            E o que dele me restava revelou-se uma estranha mistura da mais profunda dor do universo com uma espécie de indiferença face ao que não podemos alterar e que, por isso mesmo, por se tratar de algum mecanismo de defesa ou mesmo de indiferença, e se era indiferença não podia ser pior, inundava a casa inteira daquela dor que, estoicamente e de modo quase masoquista, desenrolei até ao fim.
            O Ricardo ainda pequeno, com um hambúrguer sobre uma mesa do McDonald’s, embebendo batatas fritas num daqueles molhos pouco saudáveis que eles vendem. O Ricardo sorrindo aquele sorriso totalmente honesto e aberto que só as crianças conhecem, diante de um pinheiro de Natal que eu montara e enfeitara só para ele, já que, para mim e só para mim, o Natal passara a ser mais indiferente do que um gato morto na berma da estrada. O Ricardo, numa pose heroica, com o braço sobre o ombro de um amiguinho da escola. O Ricardo, já com os seus dez anos, sentado à mesa de Joana, contrariado com a refeição que lhe desagradava. O Ricardo, aos catorze, deixando-me tirar-lhe uma foto por especial favor, numa fase em que decidira não gostar de fotografias.
            Pausei, fui buscar a garrafa de whisky, servi-me, bebi de um trago e servi-me de novo.
            O pequeno Ricardo na praia, em pose de homem musculoso. O Ricardo equilibrando-se na bicicleta que lhe oferecera pelo seu nono aniversário. O Ricardo jogando à bola no pátio com os amiguinhos. O Ricardo, rodeado de familiares e amigos, soprando as velas no seu décimo-quinto aniversário. A partir daí, as fotos deixaram de existir. Talvez por culpa minha, por ter deixado de me preocupar em guardar o tempo em pequenos retângulos coloridos, erradamente convencido de que o tempo era coisa duradoura.
            Engoli o que restava de whisky no fundo do copo e encerrei o computador. Uma lágrima teimosa, a contragosto, deslizou-me pelo rosto. Limpei-a com a palma da mão aberta, respirei tão fundo quanto pude e subi para me deitar.
            Nessa noite, mesmo antes de adormecer, arrisquei e pedi a Deus que me permitisse contactar com Ricardo em sonhos…
            - Ricardo, porquê?
            - Por nada.
            - Por nada, como?
            - Por nada mesmo. Desculpa, pai. Quis saber como era.
            O facto é que, embora consciente de que todos sonhamos quando dormimos e que não há quem não sonhe, acordei, uma vez mais, com a sensação de uma noite em branco. Nem Deus me valia. Talvez não existisse. Se não existisse, também não podia culpá-lo de nada. Que vazio…

19.11.18

Ricardo - capítulos VI e VII


VI

            - Queres que te sirva? Diz-me quando estiver bem.
            Era domingo e jantava em casa de Joana e do meu cunhado como se tornara hábito. Olhei através da larga janela da sala. Estava um céu perfeitamente limpo e estrelado, cobrindo as copas das árvores que paulatinamente se despiam para a nova estação que estava ali à beira. Abanavam numa dança incongruente ao ritmo de um vento que se erguera.
            - Está bom. Obrigado. Espera, só mais duas ou três batatas. Sim. E um bocadinho de molho sobre o arroz. Obrigado.
            Recolhi o prato, cheio de um assado de aspeto delicioso e deixei que Mário me enchesse o copo de um dos melhores tintos que guardava no fresco da cave. Estava a ser mimado. Francamente, não me importava muito nem era necessário. Mas também não posso afirmar que fosse desagradável.
            - Bom apetite! – desejou-nos a minha irmã.
            - Bom apetite. – respondi.
            - Bom apetite para ti também, minha querida. – disse Mário, provando uma garfada do assado – Hmm, está ótimo. Devias abrir um restaurante!
            - Tu cozinhavas, gerias o pessoal e eu ocupava-me da contabilidade. – brincou Joana. Mário riu e ergueu o copo num brinde.
            - A nós!
            Falámos de trivialidades, intercaladas por momentos de silêncio em que apenas se escutavam os ruídos da refeição, juntamente com o vento e um automóvel ou outro que passava em pano de fundo.
            A dada altura, Joana inclinou-se muito ligeiramente e, voltando-se para mim, perguntou:
            - Já retomaste a arquitetura a tempo inteiro? Sabes que não podes deixar o gabinete em autogestão. Para além de que se não a retomas não faltarão outros a querer tomar o que poderia ser teu.
            Pensei que tanto se me dava. Raciocinei, igualmente, que Joana tinha toda a razão.
            - Por acaso… - menti – ,…tenho um novo projeto importante em mãos. Uma coisa não só de monta, mas igualmente muito interessante porque o meu cliente, uma fundação importante, me deixa o campo livre à criação.
            Pausei e repensei seriamente, antes que se pusessem a interrogar-me acerca do tal projeto…Pousei os talheres, engoli um grande gole e reenchi o copo.
            - Bom, ok. Não é bem assim. É verdade que tenho estado mais presente no gabinete. Apareço lá com alguma frequência. Mas o que acabei de dizer não é verdade porque não me tem sobrado espaço mental para me debruçar sobre nada de realmente importante. Só business as usual. Sim, sei que não é muito, mas é a verdade. E o que disseste também é verdade. Se não me mexo, outros vão tomar o meu lugar. Nem sei porque é que inventei essa do grande projeto. Falta-me o espaço mental. Bem gostaria que não faltasse… Mais alguma coisa?
            Notei que pronunciara as últimas palavras com alguma aspereza que nenhum dos dois merecia de todo. Mas antes que me pudesse desculpar, Joana inclinou-se um pouco mais e insistiu:
            - Não faz mal, sabes? Continuas a ter o mesmo valor. É como andar de bicicleta.
            - Mas convém não parar com os treinos. – interveio Mário.
            Joana fitou-o rapidamente de lado e prosseguiu:
            - Ouve… Sabes que tanto eu como o Mário adorávamos o Ricardo.
            Todos os meus músculos se retesaram em simultâneo.
            - Sabes que o adorávamos… - continuou – Mas agora trata-se de ti. Um grande amigo nosso…
            - O Rafael. – cortou Mário.
            Joana lançou-lhe mais um olhar disfarçado.
            - Sim. O Rafael. Bom, por vezes, quando estamos em baixo, há pessoas especializadas em ouvir-nos e em ajudar-nos a ultrapassar os problemas. E há remédios adequados. Antidepressivos. Os antidepressivos atuais estão a milhas de distância dos antigos. Não é vergonha nenhuma tomar antidepressivos durante um espaço de tempo, apenas o necessário. E, simultaneamente, conversar com um especialista. O Rafael é psiquiatra. E muito conceituado. O Mário conhece-o há muito. Eu também, há bastante. Tomámos a liberdade de te mencionar e ele mostrou-se muito interessado em te ajudar. Acredita, é totalmente confiável.
            Senti-me incomodado e remexi-me desconfortavelmente na cadeira. Silêncio e espera de alguns instantes. Controlei uma certa agressividade contida que, ultimamente, me vinha acompanhando. Sempre fora um indivíduo muito controlado, mas não conseguia chegar a controlar esse impulso no fundo de mim. Não me espantava, claro, que mais ninguém se apercebesse.
            - Hmm… - ponderei sem ponderar a resposta que já estava pronta em mim – Agradeço, mas estou bem melhor. Acho que vou conseguir tomar conta de mim sem precisar de recorrer a médicos.
            Pausei e desculpei-me:
            - Eu sei que as vossas intenções são as melhores. Até acredito que o vosso amigo seja muitíssimo competente. E estou fundamentalmente agradecido por tudo o que têm feito por mim. Mas confiem… Palavra, eu sei sobreviver.
            Um véu de frustração pairou por instantes na sala. Quem é que eu pretendia enganar?
            Disfarçando a contrariedade, Joana pegou-me na mão e disse:
            - Bom, tens que nos desculpar. Mas a verdade é que, visto de fora, como te temos visto, nunca mais foste o mesmo. Certo, não é de esperar por milagres. Mas preocupas-nos. Muito. Entendes isso?
            Suspirei fundo, pestanejei e mantive a minha resistência de pedra e cal. Forcei um sorriso e expliquei:
            - Sou mais forte do que julgas, maninha. Se achar que preciso do vosso amigo Rafael, prometo que aviso. Faz-me o favor de não te preocupares sem razão. Claro, nunca vou esquecer o Ricardo. Quanto a isso, que é que posso dizer? Não vou. Ele nunca deixa de estar presente. Mas sou mais forte do que isso. Mesmo.
            Senti a mão preocupada de Joana apertando-se na minha.
            - Não deixes de fazer o que é melhor para ti… - era quase uma súplica. Provavelmente, mais do que eu merecia.
            - Não te preocupes… - respondi, fingindo não sentir, também eu, alguma preocupação.
            - Queres que te sirva de mais vinho, Miguel? – interveio Mário, numa tentativa de aliviar a situação – Espera. Tenho lá em baixo uma pinga a que não vais poder ficar indiferente. Vou buscar. Não saias do lugar.

            No momento em que nos despedimos, cerca da uma da manhã, quando já todos bocejávamos um pouco, não sem a colaboração dos vinhos especiais de Mário, a noite continuava estrelada e o vento gerava pequenos redemoinhos nas folhas secas do passeio.
            - Tem cuidado ao volante, Miguel! Liga-nos a confirmar que chegaste bem. – pediu Joana.
            - E não te deixes apanhar pelo braço longo da lei para não termos de nos levantar e ir-te pagar a fiança. – brincou o marido.
            - Não se preocupem. – sorri, com a estranha sensação de que andava a repetir aquela frase demasiadas vezes.

            Deixara o automóvel a um par de quarteirões. Abotoei a gabardina e pus-me em andamento. As ruas estavam desertas, à parte a passagem de algum carro com jovens de festa em festa. Se alguém não se preocupava era eu. Se se quisessem espetar contra algum muro, seria problema deles. Que estranho pensamento!
            Quando me preparava para abrir a porta do automóvel, passou por mim uma figura escanzelada, espécie de marioneta, inteiramente vestido de ganga exageradamente coçada, rasgada e descosida até, de olhar perdido, branco. Sabia que havia, relativamente perto, um bairro social com grande fama de supermercado da droga. O rapaz ou homem, porque era difícil de o situar, devia vir de lá. O mais curioso nele é que parecia vir a treinar para a marcha das Olimpíadas que se seguissem. Devia estar possuído por todas as doenças do mundo. Onde iria buscar energia para aquele andamento furioso? Quase me derrubava, sem particularmente dar por mim. Vi-o desaparecer na esquina seguinte antes sequer de ter tido tempo para raciocinar. Senti uma certa pena dele. Pouca, na verdade. Seguidamente, como se sentisse tudo de uma só vez, foi a vez de uma estranha tontura ao lembrar-me de Ricardo. Não tive pena de Ricardo. Não podia. Efetivamente, senti, isso sim, uma profunda pena de mim mesmo.
            Guiei cuidadosamente até casa. Mas aquela noite estava reservada a coisas fora do normal. No caminho, inteiramente absorto nos meus pensamentos vagos, parei atrás de dois carros quando o semáforo, junto a uma praça retangular e arborizada, passou ao vermelho.
            Subitamente, vi o indivíduo do veículo que seguia imediatamente à minha frente sair impulsivamente do interior. Chegou em passos largos ao carro da frente, escancarou a porta repentinamente e puxou o outro condutor com o ímpeto de um único gesto, lançando-o sobre o piso de alcatrão gasto. Levava na mão direita o que me pareceu ser um bastão de basebol. Sem qualquer espécie de aviso e antes que o condutor da frente pudesse reagir, agrediu-o furiosamente, vezes sem conta, como quem malha num saco de areia e não olha sequer para onde acerta. Escutava-se o movimento do bastão contra o ar frio da noite, talvez o quebrar de ossos e ainda os gemidos e pedidos de piedade do outro, certamente surpreendido, atarantado e atemorizado. Por fim, silenciaram-se os gemidos. O indivíduo do bastão imobilizou-se, levou rapidamente a mão à testa, cuspiu sobre o corpo inerte do outro, regressou ao carro com a mesma violência com que de lá saíra, lançou o bastão desacordado para o banco traseiro e arrancou, noite fora, com o semáforo ainda no vermelho e um guinchar dos pneus.
            Estupefacto, olhei para o que restava no local… O homem, imóvel, sobre o alcatrão e, no assento de trás, com as mãos desesperadamente coladas ao vidro, arranhando-o, uma criança pequena que chorava convulsivamente. Sabia que deveria ir ajudar. Perguntei-me porque é que não tinha anotado a matrícula do automóvel foragido. A criança chorava e gritava como se o mundo terminasse ali mesmo e não houvesse mais mundo, nunca mais. Tive a certeza de que deveria ir ajudar. Entretanto, o semáforo voltou ao verde e, sem compreender exatamente como, pousei o pé no acelerador e simplesmente retomei o caminho. O choro da criança do banco traseiro ficou para trás, muito para trás, até se sumir por completo.

            Quando entrei em casa, lembrei-me do que prometera a Joana e liguei-lhe.
            - Então? – perguntou-me – Correu tudo bem? Não deste com o bicho papão na estrada?
            - Correu tudo normalmente. Obrigado pela preocupação. Dorme bem.
            - Tu também. Beijinho.
            - Beijinho.


























VII

            Recomecei a frequentar e a gerir mais de perto o gabinete. As palavras trocadas em casa da minha irmã pareciam fazer sentido. Pareciam porque continuava pouco importado com o caso. Mas não tão pouco que não soubesse, racionalmente, que estavam certas.
            Quando decidi fazê-lo, dirigi-me à porta do quarto que fora e que, para mim, ainda era, de Ricardo. Encontrava-se fechada desde a altura em que ele desaparecera. Nunca mais lá ousara entrar. Abri-a hesitantemente e rangeu um pouco. Tudo estava tal como fora deixado. A cama encostada à parede branca, a desarrumação costumeira que eu não ousara ou não quisera arrumar, a Gibson deitada num canto, junto a um pequeno amplificador, a uns headphones e a um par de pedais, a janela que eu trancara e que mantinha o quarto na escuridão. Comecei por a abrir, como se me preparasse para o receber depois de umas férias prolongadas. Olhei em volta pausadamente, tristemente. Perguntei-me porquê, sabendo de antemão que a maioria das perguntas só obtém respostas forjadas, que poderiam muito bem ser outras, desde que parecendo fazer algum sentido. Em todo o caso, não havia ninguém, naquele quarto vazio, porque eu também me senti como se lá não estivesse e não tinha respostas, que me pudesse elucidar. Aceitaria de bom grado uma resposta forjada. Qualquer uma. Mas nunca nenhum morto regressara para falar comigo e também não foi naquele momento que tal aconteceu. Sabia perfeitamente que assim era, mas não deixei de sentir uma leve esperança de um milagre como nos livros. O milagre, claro está, não aconteceu.
            Num impulso lento, como se acreditasse em alguma coisa, ajoelhei-me junto à cama, improvisei algumas orações e pedi a Deus que guardasse Ricardo feliz e em segurança. Seguiu-se o silêncio, enquanto, ainda como se acreditasse, aguardei algum tipo de resposta ou sinal do Além. Não chegou, naturalmente. Então, debrucei-me, beijei a almofada do meu filho e saí, fechando novamente a porta, sem olhar para trás.
           
            Recomecei, portanto, a frequentar e a gerir o gabinete. Pareceu-me que os meus colaboradores sentiram algum alívio pelo facto. Não é que alguém tivesse relaxado as suas funções na minha ausência e na minha semi-ausência. Era fácil verificar que assim não fora. Quando os escolhia, a bem dizer, escolhia-os bem: não só pela capacidade, como também pela seriedade e vontade de seguir em frente. Não me enganara, verifiquei. Claro que não. Eis uma autogestão que resultara, pelo menos até àquele ponto. Mais cedo ou mais tarde, no entanto, e eu compreendi que era esse o sentimento geral, tornar-se-ia importante ter-me de volta. Bom, estava efetivamente de volta e decidi, naquele instante, que estava de volta definitivamente. A primeira atitude dos arquitetos daquele gabinete foi, confesso, um pouco sufocante. A quantidade de opiniões que me pediam, estando eu perfeitamente ciente de que não precisavam de tanta opinião, e a afabilidade talvez excessiva com que se me dirigiam, agradaram-me e, simultaneamente, sufocaram-me. Mas suponho que fosse absolutamente natural.
            Pedi-lhes que largassem os computadores em que se atarefavam. Deveríamos fazer uma reunião. Agradeci-lhes brevemente não só a capacidade demonstrada para manter a máquina a rolar como a amizade demonstrada. Disse-lhes que estava tudo bem.
            - Não se preocupem comigo. – repeti pela enésima vez, consciente do facto.
            Por fim, a par de tudo, inclusive de propostas que tinham chegado via telefone, email, carta, depois de, em conjunto e sob a minha supervisão, termos selecionado as ideias mais importantes, atribuí tarefas e deleguei certos contactos ao meu colaborador mais antigo, o João Gomes, com instruções claras de negociação e a indicação de que, em caso de qualquer dúvida, o meu telemóvel estaria disponível.
            Saímos da sala de reuniões e regressámos ao gabinete onde todo o trabalho prático era levado a cabo. Olhei para o relógio de pulso e, repetindo a minha satisfação com o trabalho de todos, anunciei que tinha que sair. Suponho que ainda não me sentiria suficientemente bem para ali ficar imerso a tempo inteiro.
            - Certíssimo. Passamos a contar consigo? – indagou João.
            - Claro. – respondi assertivamente – Estou de volta.
            Consegui compreender que pela sala perpassou um sentimento de agrado e alívio pela minha assertividade.

            A consciência súbita do meu caminho que, de modo quase sobrenatural, me ocorrera junto à praia, não tinha exatamente a ver com arquitetura. Depois de um almoço rápido e mecânico, regressei a casa e postei-me diante do ecrã do meu PC de mesa. Liguei-o. Conectei-me à Internet. Comecei a pesquisar febrilmente. Importing guns from the USA to Portugal, Buying guns in the USA, Buying guns in EuropePesquisei e pesquisei até me doerem os olhos e a cabeça. A coisa não parecia nada fácil. Na realidade, parecia bastante impossível. Entretanto, mais forte e certeira do que as dificuldades aparentes era a certeza de que tinha uma missão a desempenhar. E essa missão sobrepunha-se a todos os senãos.

12.11.18

Ricardo - capítulos IV e V


IV

            No dia seguinte, após uma noite em que finalmente sonhei, sonhos confusos, mas os sonhos são basicamente confusos, mesmo quando parecem aproximar-se da realidade, acordei, não extenuado, mas revoltado. Sentia, pelo menos, uma certa revolta de contornos incertos face aos pesos que arrastara ao longo da vida. A luta inglória e plena de cansaço crescente contra a doença terminal da minha mulher, Inês, de quem Ricardo herdara os olhos de um azul claro e alegre. A queda invisível no abismo e a morte do meu filho… Só agora, como numa revelação, me apercebia de como a alegria nos seus olhos desfalecera nos últimos tempos em que convivêramos! Os meses que entretanto tinham decorrido como se não decorressem, um apagão desgraçado na minha vida. Revoltado, sobretudo, por compreender que o mundo funcionava como bem calhava e que só à distância ficamos com a impressão de que poderíamos ter feito algo para alterar o rumo das coisas. Embora sentisse e temesse que assim pudesse ter sido, a razão, subitamente recuperada, ou aparentemente convalescente, mostrava-me que se tivesse sido outro não teria sido eu e que isso esbarrava contra alguma possibilidade prática.

            Dei comigo a tomar decisões. Decidi, por exemplo, ir verificar como as coisas andavam pelo meu atelier, localizado num rés-do-chão batido pelo sol, num prédio moderno do centro. Bati à porta, embora tivesse, claro, a chave. Não foi sem alguma alegria que verifiquei que todos, colaboradores mais antigos e estagiários, me receberam efusivamente, ou atenciosamente, tendo em conta aquilo por que vinha passando, e que talvez a minha presença ali fizesse alguma falta. Senti-me igualmente satisfeito ao aperceber-me que era o gestor de uma máquina suficientemente bem oleada para que tudo tivesse decorrido em clima de normalidade de trabalho e que nenhum projeto ficara abandonado ou diminuído em resultado da minha ausência continuada. Isso era bom. Ou mau? Significava também que talvez eu não fosse tão necessário quanto imaginava. Não… A base dos projetos era minha, o nome era meu, conquistara-o, a arte era eu que a ensinava ou aperfeiçoava. O atelier funcionava e isso não me era de todo alheio. Avaliei o andamento de uma ou outra obra mais interessante e garanti que tudo regressaria à normalidade muito em breve. Acompanhado à saída por todos, voltei a salientar que não tardaria a estar de volta e que poderíamos, todos, pensar em novos e belos projetos e parti, decididamente convencido do que acabara de afirmar.

            O automóvel levou-me à beira-mar… Dirigi-me hesitantemente ao largo paredão que encimava as ondas, evitando, pelo caminho, o embate com uma gaivota mais aérea. Sentei-me num banco vermelho, desgastado do uso e da salinidade que me entrava poros dentro e quase me encharcava os cabelos. Respirei-a fundo. Reclinei-me. Respirei-a ainda, como quem respira o último balão de ar do universo, o balão de ar que contém em si todo o passado e nos permite aguardar algum tipo de presente que conduza a um qualquer futuro. Podem ser cinco minutos. Podem ser cinquenta anos. Inspirei até ao fundo dos pulmões, até não caber mais uma molécula de água e sal no meu corpo que lutava para encontrar o relaxamento.
            Muitas vezes ali fora, tantos anos antes, o tempo parecia ter-me desgastado mais a mim que ao banco onde me estirava, com Ricardo. Ele gostava do mar. Corria areia fora e era capaz de o fazer por horas a fio, se eu não acabasse invariavelmente por lhe pegar na mão pequenina e o levar de volta a casa. Vendo bem, poderia ter tido menos pressa de partir. O tempo é um todo que nunca conseguimos agarrar, mas talvez a culpa não seja mais dele do que nossa… Fechei os olhos e inspirei novamente.

            - Papá! Papá!
            - Sim, filho, que é?
            Na minha recordação, a atmosfera estava invernosa e eu sentia alguma urgência de lhe escapar.
            - Anda correr comigo!
            Ricardo gargalhava como quem ainda descobre o prazer da gargalhada e se surpreende sem o saber. Anda correr comigo! Correr não era coisa que me apetecesse, talvez correr dali para fora antes que a nortada me arrastasse. Ou antes que me constipasse. E aquela gargalhada era, no entanto, tão minha, como se fosse a gargalhada que perdera em alguma esquina do tempo e que podia tentar recuperar agora, parcial e temporariamente, naquele ser pequenino que rondava os quatro anos. Anda correr comigo! Corremos juntos de um lado ao outro do areal.
            As pálpebras cerravam-se-me, quase me magoando, enquanto visualizava o passado…
            Corremos areal fora. O discurso de Ricardo não era o mais elaborado do mundo. Nem tinha que ser. Eu gostava dele assim. Papá! Papá! E corremos, enfrentando o vento e os olhares dos que sempre pensamos, não os pequenos, mas sim os grandes, que nos julgam e que isso nos pode, de alguma estranha forma, prejudicar. Como se um homem chegasse a casa naquele dia, se voltasse para a mulher e perguntasse escandalizado:
            - Maria, fazes ideia do que hoje vi na praia?
            - Não, o que foi?
            - Um matulão a correr pela praia com o filho de quatro anos! Que vergonha!
            - Oh, sim, mas que falta de noção das conveniências! Vivemos tempos difíceis!
            E como se os desconhecidos nos afetassem…
          Corremos. Ricardo ria e eu, contagiado, acabei a rir com ele, já meio esquecido da nortada e das potenciais constipações. Subitamente, Ricardo estacou, muito direito, perto do desenrolar das ondas, fez-se sério, olhou-me enquanto apontava o horizonte com o pequeno indicador esticado, e interrogou:
            - Papá!
            - Sim, filho?
            - Onde é que acaba o mar? Há monstros maus lá no fundo?
            Sorri sinceramente. Tive vontade de inventar uma história de monstros marinhos só para ele, porque sabia que ele gostava muito de me ouvir contar histórias que ia construindo à medida do instante. No entanto, respondi simplesmente:
            - Do lado de lá fica a América.
            - E o que é a América?
            - É um sítio onde moram pessoas como nós. Tem casas. Os meninos têm brinquedos. Há jardins. Praias. Há muitas coisas, como cá. Agora… - franzi o sobrolho na brincadeira - … eles falam é uma língua diferente da nossa.
            - E o que é uma língua?
            Boa pergunta…
            - Uma língua é mexer a boca e percebermos o que estamos a dizer.
            Ricardo começou a mexer muito a boca, auxiliando-se com os deditos esticados, enquanto fazia palhaçadas. Depois, recomeçou a correr, apanhei-o e agarrei-o pela cintura. Ele esperneava.
- Quando for grande vou ao outro lado do mar!
- Sim, se quiseres ser comido pelos monstros!
            Parou de espernear e disse:
            - Mas… pensei que não havia monstros…
            - E não há. Só para os meninos que não vêm já para casa.
            - Não! Quero ficar aqui contigo!
            - Eu vou ficar sempre contigo…

            Já recordara demais. Fora um misterioso sabor agridoce. Ou salgado como o mar e as lágrimas de saudade e frustração que, agora, me molhavam as pálpebras de forma menos intempestiva que o oceano ou a noite anterior.













V

            Quando acordei, no dia seguinte, já tarde manhã fora, após uma noite de sono muito inquieto, dei com a roupa da cama toda caída ou quase caída no soalho. Ensonei-me até à janela e corri a persiana de um só golpe. Estava um dia ventoso, chuvoso, enegrecido e pesado. Era outono, mas o inverno não tardaria. Sentia-me tonto e dormente de alguns copos de whisky que me tinham ajudado a passar o tempo no silêncio que entupia a casa inteira. O quadro teria ficado completo com o tiquetaque maníaco de um daqueles velhos relógios de parede que não faziam parte do meu mobiliário. Em todo o caso, senti uma súbita noção da passagem do tempo, como um carrasco que pode ser nosso amigo ou cortar-nos para sempre da face da terra, sem que alguma vez cheguemos a entender precisamente a razão. Os monstros marinhos tinham escapado do oceano e extravasado para o mundo. Tonto e dormente. O raciocínio entorpecido. Os gestos mecânicos. O mundo na penumbra, penetrando cada poro da casa e cada poro meu. Quais serão os meus planos para hoje?, interroguei-me.
            Esquecido do almoço e, talvez desgrenhado em demasia, deixei que o automóvel me conduzisse até à praia onde estivera no dia anterior. Estava absolutamente deserta, como uma irmã mais velha de um Sahara diferente. Limpei o vidro embaciado com a manga do casaco e observei, sem um esboço de raciocínio. Não sabia sequer exatamente o que fazia no local. A chuva e o vento trepidavam e o mar turbulento, de um azul muito escuro em vagas elevadas, basicamente um cinzento impenetrável, parecia fundo de mistério e vazio de vida.
            Repentinamente e sem que o tivesse planeado, abri a porta, saí para a intempérie, e deixei que a minha raiva contida a fechasse violentamente. Espantei-me comigo mesmo.
            Senti que havia algo de estranho em tudo. No entanto, não lograva compreender o quê. Não passava de uma sensação crescente de desconforto e, talvez, uma certa desconfiança de risco iminente. Naquele instante, o mundo estava de pernas para o ar. Mas como seria realmente o mundo se não de pernas no chão? Notei que rangia os dentes de modo inconsciente.
            Caminhei a passos largos até ao banco gasto do dia anterior e deixei-me cair, sentado no vazio de pensamentos que me conquistava juntamente com a sensação do erro misterioso que me rodeava. Talvez tenha desejado que o mar me engolisse e acabasse definitivamente com tudo. O meu dilúvio pessoal, lavando os pecados do mundo! Mas o mar recusava-se a chegar até ao meu banco.
            Não tenho ideia de quanto tempo me terei deixado ficar e arrastar naquele cocktail intenso e amargo, embriagado de insensibilidade, no entanto, naquele banco velho e chapinhante, martirizado por algumas gravações talhadas a canivetes desconhecidos na madeira roída, entalado entre a chuva que me toldava a visão e a força exagerada do oceano, com a areia escurecida de humidade e as rochas irregulares e lúgubres entre nós. Olhava sem pensar nem olhar. Como que envolto numa dança sufi estonteante, em transe e meditação, simultaneamente aquém e além do horizonte toldado como que por uma cortina prestes a abrir-se para alguma representação teatral.
            Por fim, ao fundo da minha estranha vigília, despertei. Encontrava-me absolutamente de pantanas, ensopado, mas nada alarmado com a circunstância. Ergui-me num impulso, sacudi-me por inteiro à maneira dos pobres cães abandonados que vagueiam pelas nossas ruas, lancei um último olhar à tempestade e imaginei toda a vida que se balouçava fundo, na distância, que se engolia mutuamente num gesto natural de sobrevivência e me ignorava, a mim e à minha terra subjetivamente firme, como era simplesmente normal. Enterrei as mãos fundo nos bolsos e regressei ao automóvel.
            Foi como se me sentasse numa almofada de água, alagado frente ao volante inútil que me levaria a todos os sítios diferentes de onde desejaria estar. O passado nunca volta, nunca se repete e nunca se conserta. Voltei a chave na ignição.
            De súbito, não mais que um nanossegundo, o caixão branco de Ricardo passou-me diante dos olhos. E, como numa epifania, ainda atarantado, compreendi que todos temos um caminho na vida e que não lhe podemos escapar porque ele virá sempre em nossa perseguição. A chuva rugia cada vez mais forte e persistente. Nada se percebia através do vidro. Mas eu compreendi, estupefacto, o meu caminho…

5.11.18

Ricardo- capítulos II e III


II

            A cerimónia fúnebre teve lugar dois dias mais tarde. Foi a minha irmã mais velha, Joana, quem se ocupou de todos os preparativos, contactos e pagamentos ao verificar que eu me encontrava algures entre uma histeria controlada e um estado catatónico. Joana era nove anos mais velha do que eu e sempre fora uma mãe para mim. Eu tivera duas mães. Ricardo não chegara, basicamente, a ter nenhuma.
            Durante esse tempo, acolheu-me em sua casa, uma vivenda de quatro frentes com um fontanário no meio do relvado dianteiro que eu mesmo, arquiteto de formação, lhe havia desenhado. Procurou esforçadamente falar comigo, recordar o passado e situar-me nalgum tipo de futuro, mas eu estava longe, muito longe, e respondia por monossílabos pouco inteligíveis. Mário, o meu cunhado, ocupava-se da casa, mantendo-se a alguma distância nos momentos em que me encontrava a sós com ela. Os dois filhos do casal, Carlos e Patrícia, estavam ambos a trabalhar no estrangeiro, ele nos Estados Unidos e ela na Alemanha, e não puderam garantir a sua vinda.
            Durante esse pequeno lapso que se me arrastou como uma eternidade, dormi, muito, como se tivesse passado um mês acordado, um sono inquieto de sonhos confusos e irrecuperáveis, que me fazia acordar repetida e repentinamente e cair de novo no semi-torpor a que não conseguia escapar. Não sei se comi. Não me recordo exatamente de ter comido. Guardo uma imagem nublada de nos sentarmos à mesa num silêncio que, instintivamente, eu não deixava cortar.
            Após o pesadelo de contornos irreais de saber o meu filho autopsiado algures numa câmara frigorífica, seguiu-se o que sempre se segue nestas situações… O padre a recitar uma lengalenga entorpecente, o caminho para o cemitério, até à campa da família, choros absolutamente distantes aos meus ouvidos, o caixão branco na sua queda lenta, os coveiros lançando terra como diariamente faziam por mester, as insuportáveis condolências, abraços, apertos de mão, palmadas nas costas…
            Parece-me que os termómetros deviam rondar os quarenta graus. Não se vislumbrava uma nuvem. O fato negro, a camisa branca, a gravata como uma forca social, colavam-se-me ao corpo como sanguessugas indesejáveis. Pouco ou nada sentia daquele desconforto no entanto tão corriqueiro. Trata-se de uma memória quase abstrata. E não derramei uma lágrima.
            Na distância, um bando de pombas, todas elas brancas, esvoaçou esbaforidamente, como que querendo escapar a um caçador invisível, logo voltando a pousar em desarrumação.
            Mário apertou-me a mão demoradamente. Joana abraçou-me com uma pequena lágrima a rolar-lhe rosto abaixo. Os meus sobrinhos não tinham podido escapar aos seus afazeres.
            - Miguel… - dirigiu-se-me Joana, misturando força e timidez - …, se quiseres, podes ficar connosco enquanto precisares. Sabes que temos sempre um quarto para ti.
            Um quarto que eu próprio criara numa casa que eu próprio criara. Agora, no entanto, não me sentia capaz de criar coisa nenhuma. A minha única verdadeira criação, a obra-prima da minha vida, de que em tempos me orgulhara, o meu único amor, estava ruidosamente ausente. Para sempre.
            - Obrigado. Já me começo a sentir melhor. – fingi - E a vida tem que continuar. A sério, muito obrigado a ambos.
            Duvidando embora, aquiesceram.
            - Sim, mas se precisares de mim, de nós, sabes que estamos sempre presentes. Nunca te acanhes, irmãozinho.
            - Eu sei. Mais uma vez, obrigado.
            Persisti em não derramar uma lágrima. E regressei à minha casa, finalmente vazia. A casa que só poderia esvaziar-se mais, algum dia, sempre desconhecido, com o meu próprio fim.








III

            Há quem se lance ao trabalho com a maior dedicação, como forma de ultrapassar pensamentos e sentimentos incómodos. Eu, entretanto, segui o rumo oposto e diminuí as minhas obrigações profissionais ao mínimo. Como tinha um gabinete de arquitetura e gente competente a trabalhar para mim, deleguei, deleguei tanto quanto pude e encerrei-me na penumbra da minha caverna como um morcego profissional escondido atrás de estalactites e estalagmites protetoras.
            Descuidei a alimentação, descuidei tudo, como num ato de suicídio íntimo e fiz do sofá da minha sala um quartel-general onde me enrodilhava frente à televisão que emitia todo o tipo de programas de que me não recordo, visto que, na verdade, olhava sem ver nem pensar. Devo ter-me conservado, assim recolhido no meu limbo privado, uns três meses. Criogenizado. Criogenizado não seria uma descrição de todo errada para o que eu existi durante esse tempo em que tudo se me tornou automático, repetitivo e despido de noções.
            Frequentemente adormecia enterrado no sofá e ali acordava no dia seguinte, desgrenhado e confundido, após mais uma noite vazia de sonhos.
            Joana telefonava-me com alguma frequência, mas eu nem sempre atendia. As lágrimas, uma só lágrima que fosse pela perda que sofrera ou pelo destino incerto dos humanos, mantinham-se teimosamente ausentes dos meus olhos, do meu rosto, talvez não da minha alma que as parecia encarcerar, mas de coisas da alma não sei o suficiente.
            Ao domingo, aceitava, meio agradecido, meio adormecido, o convite de Joana para almoçar. Ela procurava distrair-me o melhor que sabia e podia, acompanhada por Mário, que se atrevia, inclusive, a contar uma ou outra piada, a que eu respondia, invariavelmente, com um sorriso automático. Davam o seu melhor. Certamente que se preocupavam com o que suponho que viam em mim e que eu, de todo, não via. Talvez eu tenha chegado a parecer-lhes um caso perdido. Não sei. Disfarçavam competentemente a sua preocupação, Joana sobretudo, mas eu estava a muitas milhas de tudo, era como um universo perdido em que as galáxias se afastam umas das outras a uma velocidade crescente.

            Foi no final de um desses domingos incaracterísticos, já pela noite, que, regressado a casa, dei comigo, pela primeira vez desde há muito, a ligar o botão do meu computador em vez do televisor de sempre.
            Pensei em verificar se tinha e-mails, possivelmente carradas deles, mas rapidamente desisti. Lembrei-me de dar uma vista de olhos nas fotografias de Ricardo, dos seus curtos dezassete anos de vida armazenados fria e digitalmente nas pastas das imagens, mas não tive forças. Misteriosamente, dei comigo frente ao Youtube. O site selecionara um conjunto de vídeos para me recomendar. E, não sei bem como, cliquei num velho vídeo de Neil Young – há anos que quase não pensava nele! – cantando The Needle and the Damage Done, acompanhado apenas por uma guitarra acústica, sozinho num palco,  como eu, muito mais sozinho e sem ninguém que me olhasse, algures, um Neil Young quase tão jovem como o meu Ricardo chegara a ser, o rosto semi-coberto por cabelos compridos e lisos de índio norte-americano, no distante ano de 1971. Escutei com atenção, o tipo de atenção que nunca mais conhecera desde o dia em que aquela seringa estúpida me cravara e entupira o coração, em modo de ecrã gigante. No final, talvez estupefacto comigo mesmo, fiquei imóvel e silencioso por um instante que me soou uma eternidade.
            Subitamente e sem aviso, as lágrimas e os soluços irromperam-me em cascata, quase me impedindo de respirar e, incapaz de conter aquela torrente até então aprisionada atrás da barragem que construíra inadvertidamente, pedi repetidamente, quase maniacamente, ao Deus em que não sabia se acreditava, que tomasse conta do meu Ricardo. Por piedade, Deus, toma conta do meu filho!