VI
- Queres que te sirva? Diz-me quando
estiver bem.
Era domingo e jantava em casa de
Joana e do meu cunhado como se tornara hábito. Olhei através da larga janela da
sala. Estava um céu perfeitamente limpo e estrelado, cobrindo as copas das
árvores que paulatinamente se despiam para a nova estação que estava ali à
beira. Abanavam numa dança incongruente ao ritmo de um vento que se erguera.
- Está bom. Obrigado. Espera, só
mais duas ou três batatas. Sim. E um bocadinho de molho sobre o arroz.
Obrigado.
Recolhi o prato, cheio de um assado
de aspeto delicioso e deixei que Mário me enchesse o copo de um dos melhores
tintos que guardava no fresco da cave. Estava a ser mimado. Francamente, não me
importava muito nem era necessário. Mas também não posso afirmar que fosse
desagradável.
- Bom apetite! – desejou-nos a minha
irmã.
- Bom apetite. – respondi.
- Bom apetite para ti também, minha
querida. – disse Mário, provando uma garfada do assado – Hmm, está ótimo.
Devias abrir um restaurante!
- Tu cozinhavas, gerias o pessoal e
eu ocupava-me da contabilidade. – brincou Joana. Mário riu e ergueu o copo num
brinde.
- A nós!
Falámos de trivialidades,
intercaladas por momentos de silêncio em que apenas se escutavam os ruídos da
refeição, juntamente com o vento e um automóvel ou outro que passava em pano de
fundo.
A dada altura, Joana inclinou-se
muito ligeiramente e, voltando-se para mim, perguntou:
- Já retomaste a arquitetura a tempo
inteiro? Sabes que não podes deixar o gabinete em autogestão. Para além de que
se não a retomas não faltarão outros a querer tomar o que poderia ser teu.
Pensei que tanto se me dava.
Raciocinei, igualmente, que Joana tinha toda a razão.
- Por acaso… - menti – ,…tenho um
novo projeto importante em mãos. Uma coisa não só de monta, mas igualmente
muito interessante porque o meu cliente, uma fundação importante, me deixa o
campo livre à criação.
Pausei e repensei seriamente, antes
que se pusessem a interrogar-me acerca do tal projeto…Pousei os talheres,
engoli um grande gole e reenchi o copo.
- Bom, ok. Não é bem assim. É
verdade que tenho estado mais presente no gabinete. Apareço lá com alguma
frequência. Mas o que acabei de dizer não é verdade porque não me tem sobrado
espaço mental para me debruçar sobre nada de realmente importante. Só business as usual. Sim, sei que não é
muito, mas é a verdade. E o que disseste também é verdade. Se não me mexo, outros
vão tomar o meu lugar. Nem sei porque é que inventei essa do grande projeto.
Falta-me o espaço mental. Bem gostaria que não faltasse… Mais alguma coisa?
Notei que pronunciara as últimas
palavras com alguma aspereza que nenhum dos dois merecia de todo. Mas antes que
me pudesse desculpar, Joana inclinou-se um pouco mais e insistiu:
- Não faz mal, sabes? Continuas a
ter o mesmo valor. É como andar de bicicleta.
- Mas convém não parar com os
treinos. – interveio Mário.
Joana fitou-o rapidamente de lado e
prosseguiu:
- Ouve… Sabes que tanto eu como o
Mário adorávamos o Ricardo.
Todos os meus músculos se retesaram
em simultâneo.
- Sabes que o adorávamos… -
continuou – Mas agora trata-se de ti. Um grande amigo nosso…
- O Rafael. – cortou Mário.
Joana lançou-lhe mais um olhar
disfarçado.
- Sim. O Rafael. Bom, por vezes,
quando estamos em baixo, há pessoas especializadas em ouvir-nos e em ajudar-nos
a ultrapassar os problemas. E há remédios adequados. Antidepressivos. Os
antidepressivos atuais estão a milhas de distância dos antigos. Não é vergonha
nenhuma tomar antidepressivos durante um espaço de tempo, apenas o necessário.
E, simultaneamente, conversar com um especialista. O Rafael é psiquiatra. E
muito conceituado. O Mário conhece-o há muito. Eu também, há bastante. Tomámos
a liberdade de te mencionar e ele mostrou-se muito interessado em te ajudar.
Acredita, é totalmente confiável.
Senti-me incomodado e remexi-me
desconfortavelmente na cadeira. Silêncio e espera de alguns instantes.
Controlei uma certa agressividade contida que, ultimamente, me vinha
acompanhando. Sempre fora um indivíduo muito controlado, mas não conseguia
chegar a controlar esse impulso no fundo de mim. Não me espantava, claro, que
mais ninguém se apercebesse.
- Hmm… - ponderei sem ponderar a
resposta que já estava pronta em mim – Agradeço, mas estou bem melhor. Acho que
vou conseguir tomar conta de mim sem precisar de recorrer a médicos.
Pausei e desculpei-me:
- Eu sei que as vossas intenções são
as melhores. Até acredito que o vosso amigo seja muitíssimo competente. E estou
fundamentalmente agradecido por tudo o que têm feito por mim. Mas confiem…
Palavra, eu sei sobreviver.
Um véu de frustração pairou por
instantes na sala. Quem é que eu pretendia enganar?
Disfarçando a contrariedade, Joana
pegou-me na mão e disse:
- Bom, tens que nos desculpar. Mas a
verdade é que, visto de fora, como te temos visto, nunca mais foste o mesmo.
Certo, não é de esperar por milagres. Mas preocupas-nos. Muito. Entendes isso?
Suspirei fundo, pestanejei e mantive
a minha resistência de pedra e cal. Forcei um sorriso e expliquei:
- Sou mais forte do que julgas,
maninha. Se achar que preciso do vosso amigo Rafael, prometo que aviso. Faz-me
o favor de não te preocupares sem razão. Claro, nunca vou esquecer o Ricardo.
Quanto a isso, que é que posso dizer? Não vou. Ele nunca deixa de estar
presente. Mas sou mais forte do que isso. Mesmo.
Senti a mão preocupada de Joana
apertando-se na minha.
- Não deixes de fazer o que é melhor
para ti… - era quase uma súplica. Provavelmente, mais do que eu merecia.
- Não te preocupes… - respondi,
fingindo não sentir, também eu, alguma preocupação.
- Queres que te sirva de mais vinho,
Miguel? – interveio Mário, numa tentativa de aliviar a situação – Espera. Tenho
lá em baixo uma pinga a que não vais poder ficar indiferente. Vou buscar. Não
saias do lugar.
No momento em que nos despedimos,
cerca da uma da manhã, quando já todos bocejávamos um pouco, não sem a
colaboração dos vinhos especiais de Mário, a noite continuava estrelada e o
vento gerava pequenos redemoinhos nas folhas secas do passeio.
- Tem cuidado ao volante, Miguel!
Liga-nos a confirmar que chegaste bem. – pediu Joana.
- E não te deixes apanhar pelo braço
longo da lei para não termos de nos levantar e ir-te pagar a fiança. – brincou
o marido.
- Não se preocupem. – sorri, com a
estranha sensação de que andava a repetir aquela frase demasiadas vezes.
Deixara o automóvel a um par de
quarteirões. Abotoei a gabardina e pus-me em andamento. As ruas estavam desertas,
à parte a passagem de algum carro com jovens de festa em festa. Se alguém não se
preocupava era eu. Se se quisessem espetar contra algum muro, seria problema
deles. Que estranho pensamento!
Quando me preparava para abrir a
porta do automóvel, passou por mim uma figura escanzelada, espécie de
marioneta, inteiramente vestido de ganga exageradamente coçada, rasgada e
descosida até, de olhar perdido, branco. Sabia que havia, relativamente perto,
um bairro social com grande fama de supermercado da droga. O rapaz ou homem,
porque era difícil de o situar, devia vir de lá. O mais curioso nele é que
parecia vir a treinar para a marcha das Olimpíadas que se seguissem. Devia
estar possuído por todas as doenças do mundo. Onde iria buscar energia para
aquele andamento furioso? Quase me derrubava, sem particularmente dar por mim.
Vi-o desaparecer na esquina seguinte antes sequer de ter tido tempo para
raciocinar. Senti uma certa pena dele. Pouca, na verdade. Seguidamente, como se
sentisse tudo de uma só vez, foi a vez de uma estranha tontura ao lembrar-me de
Ricardo. Não tive pena de Ricardo. Não podia. Efetivamente, senti, isso sim,
uma profunda pena de mim mesmo.
Guiei cuidadosamente até casa. Mas
aquela noite estava reservada a coisas fora do normal. No caminho, inteiramente
absorto nos meus pensamentos vagos, parei atrás de dois carros quando o
semáforo, junto a uma praça retangular e arborizada, passou ao vermelho.
Subitamente, vi o indivíduo do
veículo que seguia imediatamente à minha frente sair impulsivamente do
interior. Chegou em passos largos ao carro da frente, escancarou a porta
repentinamente e puxou o outro condutor com o ímpeto de um único gesto,
lançando-o sobre o piso de alcatrão gasto. Levava na mão direita o que me
pareceu ser um bastão de basebol. Sem qualquer espécie de aviso e antes que o
condutor da frente pudesse reagir, agrediu-o furiosamente, vezes sem conta,
como quem malha num saco de areia e não olha sequer para onde acerta.
Escutava-se o movimento do bastão contra o ar frio da noite, talvez o quebrar
de ossos e ainda os gemidos e pedidos de piedade do outro, certamente
surpreendido, atarantado e atemorizado. Por fim, silenciaram-se os gemidos. O
indivíduo do bastão imobilizou-se, levou rapidamente a mão à testa, cuspiu
sobre o corpo inerte do outro, regressou ao carro com a mesma violência com que
de lá saíra, lançou o bastão desacordado para o banco traseiro e arrancou,
noite fora, com o semáforo ainda no vermelho e um guinchar dos pneus.
Estupefacto, olhei para o que
restava no local… O homem, imóvel, sobre o alcatrão e, no assento de trás, com
as mãos desesperadamente coladas ao vidro, arranhando-o, uma criança pequena
que chorava convulsivamente. Sabia que deveria ir ajudar. Perguntei-me porque é
que não tinha anotado a matrícula do automóvel foragido. A criança chorava e
gritava como se o mundo terminasse ali mesmo e não houvesse mais mundo, nunca
mais. Tive a certeza de que deveria ir ajudar. Entretanto, o semáforo voltou ao
verde e, sem compreender exatamente como, pousei o pé no acelerador e
simplesmente retomei o caminho. O choro da criança do banco traseiro ficou para
trás, muito para trás, até se sumir por completo.
Quando entrei em casa, lembrei-me do
que prometera a Joana e liguei-lhe.
- Então? – perguntou-me – Correu tudo
bem? Não deste com o bicho papão na estrada?
- Correu tudo normalmente. Obrigado
pela preocupação. Dorme bem.
- Tu também. Beijinho.
- Beijinho.
VII
Recomecei a frequentar e a gerir
mais de perto o gabinete. As palavras trocadas em casa da minha irmã pareciam
fazer sentido. Pareciam porque
continuava pouco importado com o caso. Mas não tão pouco que não soubesse,
racionalmente, que estavam certas.
Quando decidi fazê-lo, dirigi-me à
porta do quarto que fora e que, para mim, ainda era, de Ricardo. Encontrava-se
fechada desde a altura em que ele desaparecera. Nunca mais lá ousara entrar.
Abri-a hesitantemente e rangeu um pouco. Tudo estava tal como fora deixado. A
cama encostada à parede branca, a desarrumação costumeira que eu não ousara ou
não quisera arrumar, a Gibson deitada
num canto, junto a um pequeno amplificador, a uns headphones e a um par de pedais, a janela que eu trancara e que
mantinha o quarto na escuridão. Comecei por a abrir, como se me preparasse para
o receber depois de umas férias prolongadas. Olhei em volta pausadamente,
tristemente. Perguntei-me porquê, sabendo de antemão que a maioria das
perguntas só obtém respostas forjadas, que poderiam muito bem ser outras, desde
que parecendo fazer algum sentido. Em todo o caso, não havia ninguém, naquele
quarto vazio, porque eu também me senti como se lá não estivesse e não tinha
respostas, que me pudesse elucidar. Aceitaria de bom grado uma resposta
forjada. Qualquer uma. Mas nunca nenhum morto regressara para falar comigo e
também não foi naquele momento que tal aconteceu. Sabia perfeitamente que assim
era, mas não deixei de sentir uma leve esperança de um milagre como nos livros.
O milagre, claro está, não aconteceu.
Num impulso lento, como se
acreditasse em alguma coisa, ajoelhei-me junto à cama, improvisei algumas
orações e pedi a Deus que guardasse Ricardo feliz e em segurança. Seguiu-se o
silêncio, enquanto, ainda como se acreditasse, aguardei algum tipo de resposta
ou sinal do Além. Não chegou, naturalmente. Então, debrucei-me, beijei a
almofada do meu filho e saí, fechando novamente a porta, sem olhar para trás.
Recomecei, portanto, a frequentar e
a gerir o gabinete. Pareceu-me que os meus colaboradores sentiram algum alívio
pelo facto. Não é que alguém tivesse relaxado as suas funções na minha ausência
e na minha semi-ausência. Era fácil verificar que assim não fora. Quando os
escolhia, a bem dizer, escolhia-os bem: não só pela capacidade, como também
pela seriedade e vontade de seguir em frente. Não me enganara, verifiquei.
Claro que não. Eis uma autogestão que resultara, pelo menos até àquele ponto.
Mais cedo ou mais tarde, no entanto, e eu compreendi que era esse o sentimento
geral, tornar-se-ia importante ter-me de volta. Bom, estava efetivamente de volta
e decidi, naquele instante, que estava de volta definitivamente. A primeira
atitude dos arquitetos daquele gabinete foi, confesso, um pouco sufocante. A
quantidade de opiniões que me pediam, estando eu perfeitamente ciente de que
não precisavam de tanta opinião, e a afabilidade talvez excessiva com que se me
dirigiam, agradaram-me e, simultaneamente, sufocaram-me. Mas suponho que fosse
absolutamente natural.
Pedi-lhes que largassem os
computadores em que se atarefavam. Deveríamos fazer uma reunião. Agradeci-lhes
brevemente não só a capacidade demonstrada para manter a máquina a rolar como a
amizade demonstrada. Disse-lhes que estava tudo bem.
- Não se preocupem comigo. – repeti
pela enésima vez, consciente do facto.
Por fim, a par de tudo, inclusive de
propostas que tinham chegado via telefone, email,
carta, depois de, em conjunto e sob a minha supervisão, termos selecionado as
ideias mais importantes, atribuí tarefas e deleguei certos contactos ao meu
colaborador mais antigo, o João Gomes, com instruções claras de negociação e a
indicação de que, em caso de qualquer dúvida, o meu telemóvel estaria
disponível.
Saímos da sala de reuniões e
regressámos ao gabinete onde todo o trabalho prático era levado a cabo. Olhei
para o relógio de pulso e, repetindo a minha satisfação com o trabalho de
todos, anunciei que tinha que sair. Suponho que ainda não me sentiria
suficientemente bem para ali ficar imerso a tempo inteiro.
- Certíssimo. Passamos a contar
consigo? – indagou João.
- Claro. – respondi assertivamente –
Estou de volta.
Consegui compreender que pela sala
perpassou um sentimento de agrado e alívio pela minha assertividade.
A consciência súbita do meu caminho
que, de modo quase sobrenatural, me ocorrera junto à praia, não tinha
exatamente a ver com arquitetura. Depois de um almoço rápido e mecânico,
regressei a casa e postei-me diante do ecrã do meu PC de mesa. Liguei-o.
Conectei-me à Internet. Comecei a pesquisar febrilmente. Importing
guns from the USA to Portugal, Buying guns in the USA, Buying guns in Europe… Pesquisei
e pesquisei até me doerem os olhos e a cabeça. A coisa não parecia nada fácil.
Na realidade, parecia bastante impossível. Entretanto, mais forte e certeira do
que as dificuldades aparentes era a certeza de que tinha uma missão a desempenhar.
E essa missão sobrepunha-se a todos os senãos.
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