II
A cerimónia fúnebre teve lugar dois
dias mais tarde. Foi a minha irmã mais velha, Joana, quem se ocupou de todos os
preparativos, contactos e pagamentos ao verificar que eu me encontrava algures
entre uma histeria controlada e um estado catatónico. Joana era nove anos mais
velha do que eu e sempre fora uma mãe para mim. Eu tivera duas mães. Ricardo
não chegara, basicamente, a ter nenhuma.
Durante esse tempo, acolheu-me em
sua casa, uma vivenda de quatro frentes com um fontanário no meio do relvado
dianteiro que eu mesmo, arquiteto de formação, lhe havia desenhado. Procurou
esforçadamente falar comigo, recordar o passado e situar-me nalgum tipo de
futuro, mas eu estava longe, muito longe, e respondia por monossílabos pouco
inteligíveis. Mário, o meu cunhado, ocupava-se da casa, mantendo-se a alguma
distância nos momentos em que me encontrava a sós com ela. Os dois filhos do
casal, Carlos e Patrícia, estavam ambos a trabalhar no estrangeiro, ele nos Estados
Unidos e ela na Alemanha, e não puderam garantir a sua vinda.
Durante esse pequeno lapso que se me
arrastou como uma eternidade, dormi, muito, como se tivesse passado um mês
acordado, um sono inquieto de sonhos confusos e irrecuperáveis, que me fazia
acordar repetida e repentinamente e cair de novo no semi-torpor a que não
conseguia escapar. Não sei se comi. Não me recordo exatamente de ter comido.
Guardo uma imagem nublada de nos sentarmos à mesa num silêncio que,
instintivamente, eu não deixava cortar.
Após o pesadelo de contornos irreais
de saber o meu filho autopsiado algures numa câmara frigorífica, seguiu-se o
que sempre se segue nestas situações… O padre a recitar uma lengalenga
entorpecente, o caminho para o cemitério, até à campa da família, choros
absolutamente distantes aos meus ouvidos, o caixão branco na sua queda lenta,
os coveiros lançando terra como diariamente faziam por mester, as insuportáveis
condolências, abraços, apertos de mão, palmadas nas costas…
Parece-me que os termómetros deviam
rondar os quarenta graus. Não se vislumbrava uma nuvem. O fato negro, a camisa
branca, a gravata como uma forca social, colavam-se-me ao corpo como
sanguessugas indesejáveis. Pouco ou nada sentia daquele desconforto no entanto
tão corriqueiro. Trata-se de uma memória quase abstrata. E não derramei uma
lágrima.
Na distância, um bando de pombas,
todas elas brancas, esvoaçou esbaforidamente, como que querendo escapar a um
caçador invisível, logo voltando a pousar em desarrumação.
Mário apertou-me a mão
demoradamente. Joana abraçou-me com uma pequena lágrima a rolar-lhe rosto
abaixo. Os meus sobrinhos não tinham podido escapar aos seus afazeres.
- Miguel… - dirigiu-se-me Joana,
misturando força e timidez - …, se quiseres, podes ficar connosco enquanto
precisares. Sabes que temos sempre um quarto para ti.
Um quarto que eu próprio criara numa
casa que eu próprio criara. Agora, no entanto, não me sentia capaz de criar
coisa nenhuma. A minha única verdadeira criação, a obra-prima da minha vida, de
que em tempos me orgulhara, o meu único amor, estava ruidosamente ausente. Para
sempre.
- Obrigado. Já me começo a sentir
melhor. – fingi - E a vida tem que continuar. A sério, muito obrigado a ambos.
Duvidando embora, aquiesceram.
- Sim, mas se precisares de mim, de
nós, sabes que estamos sempre presentes. Nunca te acanhes, irmãozinho.
- Eu sei. Mais uma vez, obrigado.
Persisti em não derramar uma
lágrima. E regressei à minha casa, finalmente vazia. A casa que só poderia
esvaziar-se mais, algum dia, sempre desconhecido, com o meu próprio fim.
III
Há quem se lance ao trabalho com a
maior dedicação, como forma de ultrapassar pensamentos e sentimentos incómodos.
Eu, entretanto, segui o rumo oposto e diminuí as minhas obrigações
profissionais ao mínimo. Como tinha um gabinete de arquitetura e gente
competente a trabalhar para mim, deleguei, deleguei tanto quanto pude e
encerrei-me na penumbra da minha caverna como um morcego profissional escondido
atrás de estalactites e estalagmites protetoras.
Descuidei a alimentação, descuidei
tudo, como num ato de suicídio íntimo e fiz do sofá da minha sala um
quartel-general onde me enrodilhava frente à televisão que emitia todo o tipo
de programas de que me não recordo, visto que, na verdade, olhava sem ver nem pensar.
Devo ter-me conservado, assim recolhido no meu limbo privado, uns três meses.
Criogenizado. Criogenizado não seria uma descrição de todo errada para o que eu
existi durante esse tempo em que tudo se me tornou automático, repetitivo e
despido de noções.
Frequentemente adormecia enterrado
no sofá e ali acordava no dia seguinte, desgrenhado e confundido, após mais uma
noite vazia de sonhos.
Joana telefonava-me com alguma
frequência, mas eu nem sempre atendia. As lágrimas, uma só lágrima que fosse
pela perda que sofrera ou pelo destino incerto dos humanos, mantinham-se
teimosamente ausentes dos meus olhos, do meu rosto, talvez não da minha alma
que as parecia encarcerar, mas de coisas da alma não sei o suficiente.
Ao domingo, aceitava, meio
agradecido, meio adormecido, o convite de Joana para almoçar. Ela procurava
distrair-me o melhor que sabia e podia, acompanhada por Mário, que se atrevia,
inclusive, a contar uma ou outra piada, a que eu respondia, invariavelmente,
com um sorriso automático. Davam o seu melhor. Certamente que se preocupavam
com o que suponho que viam em mim e que eu, de todo, não via. Talvez eu tenha
chegado a parecer-lhes um caso perdido. Não sei. Disfarçavam competentemente a
sua preocupação, Joana sobretudo, mas eu estava a muitas milhas de tudo, era
como um universo perdido em que as galáxias se afastam umas das outras a uma
velocidade crescente.
Foi no final de um desses domingos
incaracterísticos, já pela noite, que, regressado a casa, dei comigo, pela
primeira vez desde há muito, a ligar o botão do meu computador em vez do
televisor de sempre.
Pensei em verificar se tinha e-mails, possivelmente carradas deles,
mas rapidamente desisti. Lembrei-me de dar uma vista de olhos nas fotografias
de Ricardo, dos seus curtos dezassete anos de vida armazenados fria e
digitalmente nas pastas das imagens, mas não tive forças. Misteriosamente, dei
comigo frente ao Youtube. O site selecionara um conjunto de vídeos
para me recomendar. E, não sei bem como, cliquei num velho vídeo de Neil Young
– há anos que quase não pensava nele! – cantando The Needle and the Damage Done, acompanhado apenas por uma guitarra
acústica, sozinho num palco, como eu,
muito mais sozinho e sem ninguém que me olhasse, algures, um Neil Young quase
tão jovem como o meu Ricardo chegara a ser, o rosto semi-coberto por cabelos
compridos e lisos de índio norte-americano, no distante ano de 1971. Escutei
com atenção, o tipo de atenção que nunca mais conhecera desde o dia em que
aquela seringa estúpida me cravara e entupira o coração, em modo de ecrã gigante.
No final, talvez estupefacto comigo mesmo, fiquei imóvel e silencioso por um
instante que me soou uma eternidade.
Subitamente e sem aviso, as lágrimas
e os soluços irromperam-me em cascata, quase me impedindo de respirar e,
incapaz de conter aquela torrente até então aprisionada atrás da barragem que
construíra inadvertidamente, pedi repetidamente, quase maniacamente, ao Deus em
que não sabia se acreditava, que tomasse conta do meu Ricardo. Por piedade,
Deus, toma conta do meu filho!
Sem comentários:
Enviar um comentário