5.11.18

Ricardo- capítulos II e III


II

            A cerimónia fúnebre teve lugar dois dias mais tarde. Foi a minha irmã mais velha, Joana, quem se ocupou de todos os preparativos, contactos e pagamentos ao verificar que eu me encontrava algures entre uma histeria controlada e um estado catatónico. Joana era nove anos mais velha do que eu e sempre fora uma mãe para mim. Eu tivera duas mães. Ricardo não chegara, basicamente, a ter nenhuma.
            Durante esse tempo, acolheu-me em sua casa, uma vivenda de quatro frentes com um fontanário no meio do relvado dianteiro que eu mesmo, arquiteto de formação, lhe havia desenhado. Procurou esforçadamente falar comigo, recordar o passado e situar-me nalgum tipo de futuro, mas eu estava longe, muito longe, e respondia por monossílabos pouco inteligíveis. Mário, o meu cunhado, ocupava-se da casa, mantendo-se a alguma distância nos momentos em que me encontrava a sós com ela. Os dois filhos do casal, Carlos e Patrícia, estavam ambos a trabalhar no estrangeiro, ele nos Estados Unidos e ela na Alemanha, e não puderam garantir a sua vinda.
            Durante esse pequeno lapso que se me arrastou como uma eternidade, dormi, muito, como se tivesse passado um mês acordado, um sono inquieto de sonhos confusos e irrecuperáveis, que me fazia acordar repetida e repentinamente e cair de novo no semi-torpor a que não conseguia escapar. Não sei se comi. Não me recordo exatamente de ter comido. Guardo uma imagem nublada de nos sentarmos à mesa num silêncio que, instintivamente, eu não deixava cortar.
            Após o pesadelo de contornos irreais de saber o meu filho autopsiado algures numa câmara frigorífica, seguiu-se o que sempre se segue nestas situações… O padre a recitar uma lengalenga entorpecente, o caminho para o cemitério, até à campa da família, choros absolutamente distantes aos meus ouvidos, o caixão branco na sua queda lenta, os coveiros lançando terra como diariamente faziam por mester, as insuportáveis condolências, abraços, apertos de mão, palmadas nas costas…
            Parece-me que os termómetros deviam rondar os quarenta graus. Não se vislumbrava uma nuvem. O fato negro, a camisa branca, a gravata como uma forca social, colavam-se-me ao corpo como sanguessugas indesejáveis. Pouco ou nada sentia daquele desconforto no entanto tão corriqueiro. Trata-se de uma memória quase abstrata. E não derramei uma lágrima.
            Na distância, um bando de pombas, todas elas brancas, esvoaçou esbaforidamente, como que querendo escapar a um caçador invisível, logo voltando a pousar em desarrumação.
            Mário apertou-me a mão demoradamente. Joana abraçou-me com uma pequena lágrima a rolar-lhe rosto abaixo. Os meus sobrinhos não tinham podido escapar aos seus afazeres.
            - Miguel… - dirigiu-se-me Joana, misturando força e timidez - …, se quiseres, podes ficar connosco enquanto precisares. Sabes que temos sempre um quarto para ti.
            Um quarto que eu próprio criara numa casa que eu próprio criara. Agora, no entanto, não me sentia capaz de criar coisa nenhuma. A minha única verdadeira criação, a obra-prima da minha vida, de que em tempos me orgulhara, o meu único amor, estava ruidosamente ausente. Para sempre.
            - Obrigado. Já me começo a sentir melhor. – fingi - E a vida tem que continuar. A sério, muito obrigado a ambos.
            Duvidando embora, aquiesceram.
            - Sim, mas se precisares de mim, de nós, sabes que estamos sempre presentes. Nunca te acanhes, irmãozinho.
            - Eu sei. Mais uma vez, obrigado.
            Persisti em não derramar uma lágrima. E regressei à minha casa, finalmente vazia. A casa que só poderia esvaziar-se mais, algum dia, sempre desconhecido, com o meu próprio fim.








III

            Há quem se lance ao trabalho com a maior dedicação, como forma de ultrapassar pensamentos e sentimentos incómodos. Eu, entretanto, segui o rumo oposto e diminuí as minhas obrigações profissionais ao mínimo. Como tinha um gabinete de arquitetura e gente competente a trabalhar para mim, deleguei, deleguei tanto quanto pude e encerrei-me na penumbra da minha caverna como um morcego profissional escondido atrás de estalactites e estalagmites protetoras.
            Descuidei a alimentação, descuidei tudo, como num ato de suicídio íntimo e fiz do sofá da minha sala um quartel-general onde me enrodilhava frente à televisão que emitia todo o tipo de programas de que me não recordo, visto que, na verdade, olhava sem ver nem pensar. Devo ter-me conservado, assim recolhido no meu limbo privado, uns três meses. Criogenizado. Criogenizado não seria uma descrição de todo errada para o que eu existi durante esse tempo em que tudo se me tornou automático, repetitivo e despido de noções.
            Frequentemente adormecia enterrado no sofá e ali acordava no dia seguinte, desgrenhado e confundido, após mais uma noite vazia de sonhos.
            Joana telefonava-me com alguma frequência, mas eu nem sempre atendia. As lágrimas, uma só lágrima que fosse pela perda que sofrera ou pelo destino incerto dos humanos, mantinham-se teimosamente ausentes dos meus olhos, do meu rosto, talvez não da minha alma que as parecia encarcerar, mas de coisas da alma não sei o suficiente.
            Ao domingo, aceitava, meio agradecido, meio adormecido, o convite de Joana para almoçar. Ela procurava distrair-me o melhor que sabia e podia, acompanhada por Mário, que se atrevia, inclusive, a contar uma ou outra piada, a que eu respondia, invariavelmente, com um sorriso automático. Davam o seu melhor. Certamente que se preocupavam com o que suponho que viam em mim e que eu, de todo, não via. Talvez eu tenha chegado a parecer-lhes um caso perdido. Não sei. Disfarçavam competentemente a sua preocupação, Joana sobretudo, mas eu estava a muitas milhas de tudo, era como um universo perdido em que as galáxias se afastam umas das outras a uma velocidade crescente.

            Foi no final de um desses domingos incaracterísticos, já pela noite, que, regressado a casa, dei comigo, pela primeira vez desde há muito, a ligar o botão do meu computador em vez do televisor de sempre.
            Pensei em verificar se tinha e-mails, possivelmente carradas deles, mas rapidamente desisti. Lembrei-me de dar uma vista de olhos nas fotografias de Ricardo, dos seus curtos dezassete anos de vida armazenados fria e digitalmente nas pastas das imagens, mas não tive forças. Misteriosamente, dei comigo frente ao Youtube. O site selecionara um conjunto de vídeos para me recomendar. E, não sei bem como, cliquei num velho vídeo de Neil Young – há anos que quase não pensava nele! – cantando The Needle and the Damage Done, acompanhado apenas por uma guitarra acústica, sozinho num palco,  como eu, muito mais sozinho e sem ninguém que me olhasse, algures, um Neil Young quase tão jovem como o meu Ricardo chegara a ser, o rosto semi-coberto por cabelos compridos e lisos de índio norte-americano, no distante ano de 1971. Escutei com atenção, o tipo de atenção que nunca mais conhecera desde o dia em que aquela seringa estúpida me cravara e entupira o coração, em modo de ecrã gigante. No final, talvez estupefacto comigo mesmo, fiquei imóvel e silencioso por um instante que me soou uma eternidade.
            Subitamente e sem aviso, as lágrimas e os soluços irromperam-me em cascata, quase me impedindo de respirar e, incapaz de conter aquela torrente até então aprisionada atrás da barragem que construíra inadvertidamente, pedi repetidamente, quase maniacamente, ao Deus em que não sabia se acreditava, que tomasse conta do meu Ricardo. Por piedade, Deus, toma conta do meu filho!

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