IV
No dia seguinte, após uma noite em
que finalmente sonhei, sonhos confusos, mas os sonhos são basicamente confusos,
mesmo quando parecem aproximar-se da realidade, acordei, não extenuado, mas
revoltado. Sentia, pelo menos, uma certa revolta de contornos incertos face aos
pesos que arrastara ao longo da vida. A luta inglória e plena de cansaço
crescente contra a doença terminal da minha mulher, Inês, de quem Ricardo
herdara os olhos de um azul claro e alegre. A queda invisível no abismo e a
morte do meu filho… Só agora, como numa revelação, me apercebia de como a
alegria nos seus olhos desfalecera nos últimos tempos em que convivêramos! Os
meses que entretanto tinham decorrido como se não decorressem, um apagão
desgraçado na minha vida. Revoltado, sobretudo, por compreender que o mundo
funcionava como bem calhava e que só à distância ficamos com a impressão de que
poderíamos ter feito algo para alterar o rumo das coisas. Embora sentisse e
temesse que assim pudesse ter sido, a razão, subitamente recuperada, ou aparentemente
convalescente, mostrava-me que se tivesse sido outro não teria sido eu e que
isso esbarrava contra alguma possibilidade prática.
Dei comigo a tomar decisões. Decidi,
por exemplo, ir verificar como as coisas andavam pelo meu atelier, localizado num rés-do-chão batido pelo sol, num prédio
moderno do centro. Bati à porta, embora tivesse, claro, a chave. Não foi sem
alguma alegria que verifiquei que todos, colaboradores mais antigos e
estagiários, me receberam efusivamente, ou atenciosamente, tendo em conta
aquilo por que vinha passando, e que talvez a minha presença ali fizesse alguma
falta. Senti-me igualmente satisfeito ao aperceber-me que era o gestor de uma
máquina suficientemente bem oleada para que tudo tivesse decorrido em clima de
normalidade de trabalho e que nenhum projeto ficara abandonado ou diminuído em
resultado da minha ausência continuada. Isso era bom. Ou mau? Significava
também que talvez eu não fosse tão necessário quanto imaginava. Não… A base dos
projetos era minha, o nome era meu, conquistara-o, a arte era eu que a ensinava
ou aperfeiçoava. O atelier funcionava
e isso não me era de todo alheio. Avaliei o andamento de uma ou outra obra mais
interessante e garanti que tudo regressaria à normalidade muito em breve.
Acompanhado à saída por todos, voltei a salientar que não tardaria a estar de
volta e que poderíamos, todos, pensar em novos e belos projetos e parti,
decididamente convencido do que acabara de afirmar.
O automóvel levou-me à beira-mar…
Dirigi-me hesitantemente ao largo paredão que encimava as ondas, evitando, pelo
caminho, o embate com uma gaivota mais aérea. Sentei-me num banco vermelho,
desgastado do uso e da salinidade que me entrava poros dentro e quase me
encharcava os cabelos. Respirei-a fundo. Reclinei-me. Respirei-a ainda, como
quem respira o último balão de ar do universo, o balão de ar que contém em si
todo o passado e nos permite aguardar algum tipo de presente que conduza a um
qualquer futuro. Podem ser cinco minutos. Podem ser cinquenta anos. Inspirei até
ao fundo dos pulmões, até não caber mais uma molécula de água e sal no meu
corpo que lutava para encontrar o relaxamento.
Muitas vezes ali fora, tantos anos
antes, o tempo parecia ter-me desgastado mais a mim que ao banco onde me
estirava, com Ricardo. Ele gostava do mar. Corria areia fora e era capaz de o
fazer por horas a fio, se eu não acabasse invariavelmente por lhe pegar na mão
pequenina e o levar de volta a casa. Vendo bem, poderia ter tido menos pressa
de partir. O tempo é um todo que nunca conseguimos agarrar, mas talvez a culpa
não seja mais dele do que nossa… Fechei os olhos e inspirei novamente.
- Papá! Papá!
- Sim, filho, que é?
Na minha recordação, a atmosfera
estava invernosa e eu sentia alguma urgência de lhe escapar.
- Anda correr comigo!
Ricardo gargalhava como quem ainda
descobre o prazer da gargalhada e se surpreende sem o saber. Anda correr
comigo! Correr não era coisa que me apetecesse, talvez correr dali para fora
antes que a nortada me arrastasse. Ou antes que me constipasse. E aquela
gargalhada era, no entanto, tão minha, como se fosse a gargalhada que perdera
em alguma esquina do tempo e que podia tentar recuperar agora, parcial e
temporariamente, naquele ser pequenino que rondava os quatro anos. Anda correr
comigo! Corremos juntos de um lado ao outro do areal.
As pálpebras cerravam-se-me, quase
me magoando, enquanto visualizava o passado…
Corremos areal fora. O discurso de
Ricardo não era o mais elaborado do mundo. Nem tinha que ser. Eu gostava dele
assim. Papá! Papá! E corremos, enfrentando o vento e os olhares dos que sempre
pensamos, não os pequenos, mas sim os grandes, que nos julgam e que isso nos
pode, de alguma estranha forma, prejudicar. Como se um homem chegasse a casa
naquele dia, se voltasse para a mulher e perguntasse escandalizado:
- Maria, fazes ideia do que hoje vi
na praia?
- Não, o que foi?
- Um matulão a correr pela praia com
o filho de quatro anos! Que vergonha!
- Oh, sim, mas que falta de noção
das conveniências! Vivemos tempos difíceis!
E como se os desconhecidos nos
afetassem…
Corremos. Ricardo ria e eu,
contagiado, acabei a rir com ele, já meio esquecido da nortada e das potenciais
constipações. Subitamente, Ricardo estacou, muito direito, perto do desenrolar
das ondas, fez-se sério, olhou-me enquanto apontava o horizonte com o pequeno
indicador esticado, e interrogou:
- Papá!
- Sim, filho?
- Onde é que acaba o mar? Há
monstros maus lá no fundo?
Sorri sinceramente. Tive vontade de
inventar uma história de monstros marinhos só para ele, porque sabia que ele
gostava muito de me ouvir contar histórias que ia construindo à medida do
instante. No entanto, respondi simplesmente:
- Do lado de lá fica a América.
- E o que é a América?
- É um sítio onde moram pessoas como
nós. Tem casas. Os meninos têm brinquedos. Há jardins. Praias. Há muitas
coisas, como cá. Agora… - franzi o sobrolho na brincadeira - … eles falam é uma
língua diferente da nossa.
- E o que é uma língua?
Boa pergunta…
- Uma língua é mexer a boca e
percebermos o que estamos a dizer.
Ricardo começou a mexer muito a
boca, auxiliando-se com os deditos esticados, enquanto fazia palhaçadas.
Depois, recomeçou a correr, apanhei-o e agarrei-o pela cintura. Ele esperneava.
-
Quando for grande vou ao outro lado do mar!
-
Sim, se quiseres ser comido pelos monstros!
Parou de espernear e disse:
- Mas… pensei que não havia
monstros…
- E não há. Só para os meninos que
não vêm já para casa.
- Não! Quero ficar aqui contigo!
- Eu vou ficar sempre contigo…
Já recordara demais. Fora um misterioso
sabor agridoce. Ou salgado como o mar e as lágrimas de saudade e frustração
que, agora, me molhavam as pálpebras de forma menos intempestiva que o oceano
ou a noite anterior.
V
Quando acordei, no dia seguinte, já
tarde manhã fora, após uma noite de sono muito inquieto, dei com a roupa da
cama toda caída ou quase caída no soalho. Ensonei-me até à janela e corri a
persiana de um só golpe. Estava um dia ventoso, chuvoso, enegrecido e pesado.
Era outono, mas o inverno não tardaria. Sentia-me tonto e dormente de alguns
copos de whisky que me tinham ajudado a passar o tempo no silêncio que entupia
a casa inteira. O quadro teria ficado completo com o tiquetaque maníaco de um
daqueles velhos relógios de parede que não faziam parte do meu mobiliário. Em
todo o caso, senti uma súbita noção da passagem do tempo, como um carrasco que
pode ser nosso amigo ou cortar-nos para sempre da face da terra, sem que alguma
vez cheguemos a entender precisamente a razão. Os monstros marinhos tinham
escapado do oceano e extravasado para o mundo. Tonto e dormente. O raciocínio
entorpecido. Os gestos mecânicos. O mundo na penumbra, penetrando cada poro da
casa e cada poro meu. Quais serão os meus planos para hoje?, interroguei-me.
Esquecido do almoço e, talvez
desgrenhado em demasia, deixei que o automóvel me conduzisse até à praia onde
estivera no dia anterior. Estava absolutamente deserta, como uma irmã mais
velha de um Sahara diferente. Limpei o vidro embaciado com a manga do casaco e
observei, sem um esboço de raciocínio. Não sabia sequer exatamente o que fazia
no local. A chuva e o vento trepidavam e o mar turbulento, de um azul muito
escuro em vagas elevadas, basicamente um cinzento impenetrável, parecia fundo
de mistério e vazio de vida.
Repentinamente e sem que o tivesse
planeado, abri a porta, saí para a intempérie, e deixei que a minha raiva
contida a fechasse violentamente. Espantei-me comigo mesmo.
Senti que havia algo de estranho em
tudo. No entanto, não lograva compreender o quê. Não passava de uma sensação
crescente de desconforto e, talvez, uma certa desconfiança de risco iminente.
Naquele instante, o mundo estava de pernas para o ar. Mas como seria realmente
o mundo se não de pernas no chão? Notei que rangia os dentes de modo
inconsciente.
Caminhei a passos largos até ao
banco gasto do dia anterior e deixei-me cair, sentado no vazio de pensamentos
que me conquistava juntamente com a sensação do erro misterioso que me rodeava.
Talvez tenha desejado que o mar me engolisse e acabasse definitivamente com
tudo. O meu dilúvio pessoal, lavando os pecados do mundo! Mas o mar recusava-se
a chegar até ao meu banco.
Não tenho ideia de quanto tempo me
terei deixado ficar e arrastar naquele cocktail intenso e amargo, embriagado de
insensibilidade, no entanto, naquele banco velho e chapinhante, martirizado por
algumas gravações talhadas a canivetes desconhecidos na madeira roída, entalado
entre a chuva que me toldava a visão e a força exagerada do oceano, com a areia
escurecida de humidade e as rochas irregulares e lúgubres entre nós. Olhava sem
pensar nem olhar. Como que envolto numa dança sufi estonteante, em transe e
meditação, simultaneamente aquém e além do horizonte toldado como que por uma
cortina prestes a abrir-se para alguma representação teatral.
Por fim, ao fundo da minha estranha
vigília, despertei. Encontrava-me absolutamente de pantanas, ensopado, mas nada
alarmado com a circunstância. Ergui-me num impulso, sacudi-me por inteiro à
maneira dos pobres cães abandonados que vagueiam pelas nossas ruas, lancei um
último olhar à tempestade e imaginei toda a vida que se balouçava fundo, na
distância, que se engolia mutuamente num gesto natural de sobrevivência e me
ignorava, a mim e à minha terra subjetivamente firme, como era simplesmente
normal. Enterrei as mãos fundo nos bolsos e regressei ao automóvel.
Foi como se me sentasse numa
almofada de água, alagado frente ao volante inútil que me levaria a todos os
sítios diferentes de onde desejaria estar. O passado nunca volta, nunca se
repete e nunca se conserta. Voltei a chave na ignição.
De súbito, não mais que um
nanossegundo, o caixão branco de Ricardo passou-me diante dos olhos. E, como
numa epifania, ainda atarantado, compreendi que todos temos um caminho na vida
e que não lhe podemos escapar porque ele virá sempre em nossa perseguição. A
chuva rugia cada vez mais forte e persistente. Nada se percebia através do
vidro. Mas eu compreendi, estupefacto, o meu caminho…
Bom dia. Risco eminente ou iminente?
ResponderEliminarOlá, Vítor. Iminente, claro. Obrigado pela chamada de atenção para a gralha. E abraço.
ResponderEliminarDepois de ponderar, gostaria de acrescentar uma coisa importante: já não sei se pretendi usar eminente ou iminente - porque ambos os usos são possíveis, ainda que com sentidos diferentes. Mas seja, ficamos com o, talvez mais óbvio, iminente...
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