12.11.18

Ricardo - capítulos IV e V


IV

            No dia seguinte, após uma noite em que finalmente sonhei, sonhos confusos, mas os sonhos são basicamente confusos, mesmo quando parecem aproximar-se da realidade, acordei, não extenuado, mas revoltado. Sentia, pelo menos, uma certa revolta de contornos incertos face aos pesos que arrastara ao longo da vida. A luta inglória e plena de cansaço crescente contra a doença terminal da minha mulher, Inês, de quem Ricardo herdara os olhos de um azul claro e alegre. A queda invisível no abismo e a morte do meu filho… Só agora, como numa revelação, me apercebia de como a alegria nos seus olhos desfalecera nos últimos tempos em que convivêramos! Os meses que entretanto tinham decorrido como se não decorressem, um apagão desgraçado na minha vida. Revoltado, sobretudo, por compreender que o mundo funcionava como bem calhava e que só à distância ficamos com a impressão de que poderíamos ter feito algo para alterar o rumo das coisas. Embora sentisse e temesse que assim pudesse ter sido, a razão, subitamente recuperada, ou aparentemente convalescente, mostrava-me que se tivesse sido outro não teria sido eu e que isso esbarrava contra alguma possibilidade prática.

            Dei comigo a tomar decisões. Decidi, por exemplo, ir verificar como as coisas andavam pelo meu atelier, localizado num rés-do-chão batido pelo sol, num prédio moderno do centro. Bati à porta, embora tivesse, claro, a chave. Não foi sem alguma alegria que verifiquei que todos, colaboradores mais antigos e estagiários, me receberam efusivamente, ou atenciosamente, tendo em conta aquilo por que vinha passando, e que talvez a minha presença ali fizesse alguma falta. Senti-me igualmente satisfeito ao aperceber-me que era o gestor de uma máquina suficientemente bem oleada para que tudo tivesse decorrido em clima de normalidade de trabalho e que nenhum projeto ficara abandonado ou diminuído em resultado da minha ausência continuada. Isso era bom. Ou mau? Significava também que talvez eu não fosse tão necessário quanto imaginava. Não… A base dos projetos era minha, o nome era meu, conquistara-o, a arte era eu que a ensinava ou aperfeiçoava. O atelier funcionava e isso não me era de todo alheio. Avaliei o andamento de uma ou outra obra mais interessante e garanti que tudo regressaria à normalidade muito em breve. Acompanhado à saída por todos, voltei a salientar que não tardaria a estar de volta e que poderíamos, todos, pensar em novos e belos projetos e parti, decididamente convencido do que acabara de afirmar.

            O automóvel levou-me à beira-mar… Dirigi-me hesitantemente ao largo paredão que encimava as ondas, evitando, pelo caminho, o embate com uma gaivota mais aérea. Sentei-me num banco vermelho, desgastado do uso e da salinidade que me entrava poros dentro e quase me encharcava os cabelos. Respirei-a fundo. Reclinei-me. Respirei-a ainda, como quem respira o último balão de ar do universo, o balão de ar que contém em si todo o passado e nos permite aguardar algum tipo de presente que conduza a um qualquer futuro. Podem ser cinco minutos. Podem ser cinquenta anos. Inspirei até ao fundo dos pulmões, até não caber mais uma molécula de água e sal no meu corpo que lutava para encontrar o relaxamento.
            Muitas vezes ali fora, tantos anos antes, o tempo parecia ter-me desgastado mais a mim que ao banco onde me estirava, com Ricardo. Ele gostava do mar. Corria areia fora e era capaz de o fazer por horas a fio, se eu não acabasse invariavelmente por lhe pegar na mão pequenina e o levar de volta a casa. Vendo bem, poderia ter tido menos pressa de partir. O tempo é um todo que nunca conseguimos agarrar, mas talvez a culpa não seja mais dele do que nossa… Fechei os olhos e inspirei novamente.

            - Papá! Papá!
            - Sim, filho, que é?
            Na minha recordação, a atmosfera estava invernosa e eu sentia alguma urgência de lhe escapar.
            - Anda correr comigo!
            Ricardo gargalhava como quem ainda descobre o prazer da gargalhada e se surpreende sem o saber. Anda correr comigo! Correr não era coisa que me apetecesse, talvez correr dali para fora antes que a nortada me arrastasse. Ou antes que me constipasse. E aquela gargalhada era, no entanto, tão minha, como se fosse a gargalhada que perdera em alguma esquina do tempo e que podia tentar recuperar agora, parcial e temporariamente, naquele ser pequenino que rondava os quatro anos. Anda correr comigo! Corremos juntos de um lado ao outro do areal.
            As pálpebras cerravam-se-me, quase me magoando, enquanto visualizava o passado…
            Corremos areal fora. O discurso de Ricardo não era o mais elaborado do mundo. Nem tinha que ser. Eu gostava dele assim. Papá! Papá! E corremos, enfrentando o vento e os olhares dos que sempre pensamos, não os pequenos, mas sim os grandes, que nos julgam e que isso nos pode, de alguma estranha forma, prejudicar. Como se um homem chegasse a casa naquele dia, se voltasse para a mulher e perguntasse escandalizado:
            - Maria, fazes ideia do que hoje vi na praia?
            - Não, o que foi?
            - Um matulão a correr pela praia com o filho de quatro anos! Que vergonha!
            - Oh, sim, mas que falta de noção das conveniências! Vivemos tempos difíceis!
            E como se os desconhecidos nos afetassem…
          Corremos. Ricardo ria e eu, contagiado, acabei a rir com ele, já meio esquecido da nortada e das potenciais constipações. Subitamente, Ricardo estacou, muito direito, perto do desenrolar das ondas, fez-se sério, olhou-me enquanto apontava o horizonte com o pequeno indicador esticado, e interrogou:
            - Papá!
            - Sim, filho?
            - Onde é que acaba o mar? Há monstros maus lá no fundo?
            Sorri sinceramente. Tive vontade de inventar uma história de monstros marinhos só para ele, porque sabia que ele gostava muito de me ouvir contar histórias que ia construindo à medida do instante. No entanto, respondi simplesmente:
            - Do lado de lá fica a América.
            - E o que é a América?
            - É um sítio onde moram pessoas como nós. Tem casas. Os meninos têm brinquedos. Há jardins. Praias. Há muitas coisas, como cá. Agora… - franzi o sobrolho na brincadeira - … eles falam é uma língua diferente da nossa.
            - E o que é uma língua?
            Boa pergunta…
            - Uma língua é mexer a boca e percebermos o que estamos a dizer.
            Ricardo começou a mexer muito a boca, auxiliando-se com os deditos esticados, enquanto fazia palhaçadas. Depois, recomeçou a correr, apanhei-o e agarrei-o pela cintura. Ele esperneava.
- Quando for grande vou ao outro lado do mar!
- Sim, se quiseres ser comido pelos monstros!
            Parou de espernear e disse:
            - Mas… pensei que não havia monstros…
            - E não há. Só para os meninos que não vêm já para casa.
            - Não! Quero ficar aqui contigo!
            - Eu vou ficar sempre contigo…

            Já recordara demais. Fora um misterioso sabor agridoce. Ou salgado como o mar e as lágrimas de saudade e frustração que, agora, me molhavam as pálpebras de forma menos intempestiva que o oceano ou a noite anterior.













V

            Quando acordei, no dia seguinte, já tarde manhã fora, após uma noite de sono muito inquieto, dei com a roupa da cama toda caída ou quase caída no soalho. Ensonei-me até à janela e corri a persiana de um só golpe. Estava um dia ventoso, chuvoso, enegrecido e pesado. Era outono, mas o inverno não tardaria. Sentia-me tonto e dormente de alguns copos de whisky que me tinham ajudado a passar o tempo no silêncio que entupia a casa inteira. O quadro teria ficado completo com o tiquetaque maníaco de um daqueles velhos relógios de parede que não faziam parte do meu mobiliário. Em todo o caso, senti uma súbita noção da passagem do tempo, como um carrasco que pode ser nosso amigo ou cortar-nos para sempre da face da terra, sem que alguma vez cheguemos a entender precisamente a razão. Os monstros marinhos tinham escapado do oceano e extravasado para o mundo. Tonto e dormente. O raciocínio entorpecido. Os gestos mecânicos. O mundo na penumbra, penetrando cada poro da casa e cada poro meu. Quais serão os meus planos para hoje?, interroguei-me.
            Esquecido do almoço e, talvez desgrenhado em demasia, deixei que o automóvel me conduzisse até à praia onde estivera no dia anterior. Estava absolutamente deserta, como uma irmã mais velha de um Sahara diferente. Limpei o vidro embaciado com a manga do casaco e observei, sem um esboço de raciocínio. Não sabia sequer exatamente o que fazia no local. A chuva e o vento trepidavam e o mar turbulento, de um azul muito escuro em vagas elevadas, basicamente um cinzento impenetrável, parecia fundo de mistério e vazio de vida.
            Repentinamente e sem que o tivesse planeado, abri a porta, saí para a intempérie, e deixei que a minha raiva contida a fechasse violentamente. Espantei-me comigo mesmo.
            Senti que havia algo de estranho em tudo. No entanto, não lograva compreender o quê. Não passava de uma sensação crescente de desconforto e, talvez, uma certa desconfiança de risco iminente. Naquele instante, o mundo estava de pernas para o ar. Mas como seria realmente o mundo se não de pernas no chão? Notei que rangia os dentes de modo inconsciente.
            Caminhei a passos largos até ao banco gasto do dia anterior e deixei-me cair, sentado no vazio de pensamentos que me conquistava juntamente com a sensação do erro misterioso que me rodeava. Talvez tenha desejado que o mar me engolisse e acabasse definitivamente com tudo. O meu dilúvio pessoal, lavando os pecados do mundo! Mas o mar recusava-se a chegar até ao meu banco.
            Não tenho ideia de quanto tempo me terei deixado ficar e arrastar naquele cocktail intenso e amargo, embriagado de insensibilidade, no entanto, naquele banco velho e chapinhante, martirizado por algumas gravações talhadas a canivetes desconhecidos na madeira roída, entalado entre a chuva que me toldava a visão e a força exagerada do oceano, com a areia escurecida de humidade e as rochas irregulares e lúgubres entre nós. Olhava sem pensar nem olhar. Como que envolto numa dança sufi estonteante, em transe e meditação, simultaneamente aquém e além do horizonte toldado como que por uma cortina prestes a abrir-se para alguma representação teatral.
            Por fim, ao fundo da minha estranha vigília, despertei. Encontrava-me absolutamente de pantanas, ensopado, mas nada alarmado com a circunstância. Ergui-me num impulso, sacudi-me por inteiro à maneira dos pobres cães abandonados que vagueiam pelas nossas ruas, lancei um último olhar à tempestade e imaginei toda a vida que se balouçava fundo, na distância, que se engolia mutuamente num gesto natural de sobrevivência e me ignorava, a mim e à minha terra subjetivamente firme, como era simplesmente normal. Enterrei as mãos fundo nos bolsos e regressei ao automóvel.
            Foi como se me sentasse numa almofada de água, alagado frente ao volante inútil que me levaria a todos os sítios diferentes de onde desejaria estar. O passado nunca volta, nunca se repete e nunca se conserta. Voltei a chave na ignição.
            De súbito, não mais que um nanossegundo, o caixão branco de Ricardo passou-me diante dos olhos. E, como numa epifania, ainda atarantado, compreendi que todos temos um caminho na vida e que não lhe podemos escapar porque ele virá sempre em nossa perseguição. A chuva rugia cada vez mais forte e persistente. Nada se percebia através do vidro. Mas eu compreendi, estupefacto, o meu caminho…

3 comentários:

  1. Olá, Vítor. Iminente, claro. Obrigado pela chamada de atenção para a gralha. E abraço.

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  2. Depois de ponderar, gostaria de acrescentar uma coisa importante: já não sei se pretendi usar eminente ou iminente - porque ambos os usos são possíveis, ainda que com sentidos diferentes. Mas seja, ficamos com o, talvez mais óbvio, iminente...

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