10.12.18

Ricardo - capítulos XII e XIII


XII

            A tarde escurecera ainda mais e um rebanho de nuvens trespassava os sentidos antes de, finalmente, esburacar caoticamente o cérebro.
            - Pá.. – disse assertivamente - …, vamos ficar por aqui que não quero ficar sem carro e este custou-me a ganhar.
            Ele é que sabia. Achei que seria provavelmente sensato. Acenei concordantemente, saímos e seguimos pela rua que descia num plano inclinado. Luís seguia com demasiada rapidez e tornava-se-me difícil acompanhar-lhe o passo. Pedi-lhe que abrandasse um pouco.
            - Ninguém vai morrer se demorarmos mais uns minutos… A negritude pairava, ameaçando um intenso chuveiro. Luís, travou a fundo e estacionou com tal precisão que pensei se tal se deveria à sorte ou se a coca apurava assim os sentidos.
            - Ouve lá, queres ir ver como é ou não? É que se não queres, ficas por aqui, que eu conheço o caminho.
            - Tem calma. Ok. Vamos lá. Mas está a custar-me acompanhar-te.
            - Falta de exercício, meu! Tens que te inscrever num ginásio.
            Entre a opção da coca e a do ginásio, o raciocínio tornava-se, no mínimo, curioso. Sendo eu o interessado ou sendo eu um dos interessados, por maior distância que pudesse haver entre as razões de cada, acedi e prosseguimos em marcha. Talvez escapemos à chuvada se nos despacharmos, pensei, num esboço de justificação.

            Por fim, chegámos junto a uma espécie de descampado que me trouxe à mente um daqueles cenários fílmicos americanos do pós-Terceira Guerra. Estacámos, um instante apenas, no entanto o suficiente para eu tirar a fotografia do conjunto. Eram grupos de edifícios extremamente elevados em cimento cru e descascado, pousados num chão de terra batida. Uma enormidade de grafitos selváticos e esquissados à toa. O senhorio não parecia ter-se preocupado enormemente com a manutenção e interroguei-me se algum arquiteto honesto se dignara olhar para lá. À entrada de uma das torres, na distância e à vista de toda a cidade, polícia incluída, formava-se uma fila de gente meio paciente, meio impaciente, mas certamente determinada. Não achei que alguém nos cedesse o lugar, mas foi para lá que nos dirigimos. Pelo caminho, senti-me observado com desconfiança e nada à-vontade. Ainda assim, permitiam-nos seguir caminho sem nos darem um tiro ou uma tareia. Luís parecia sentir-se mais em casa do que eu e, embora intimamente inquieto face àquele mundo diferente, eu aproveitava a boleia.
            Posicionámo-nos na fila e aguardámos, aguardámos infinitamente enquanto subíamos a escadaria que rodeava um grande vau interior cada vez mais elevado e estonteante e cruzávamos portas de madeira barata, em estado extremamente degradado. A tonalidade do cimento tornava-se opressiva. O corrimão, se assim quisermos chamar à parede baixa externa onde nos segurávamos, era extremamente fino, parecendo poder sofrer uma derrocada a qualquer instante. Manchas de humidade acumulada que, por vezes, cediam lugar a fugas de água de que ninguém trataria, pintavam tetos e paredes, aqui e ali. Os cheiros misturavam-se e eram, regra geral, bastante incómodos. A fila avançava lentamente e a impaciência própria da expetativa começava a sobressair entre muitos dos que nos acompanhavam. Pareceu-me ver uma gota de suor escorrer na testa do próprio Luís. O mais interessante, ou o mais incrível, era que sem dúvida muita gente morava ali, naquele universo deslocado e quase bizarro. Bizarro para mim, especifiquei em pensamento. Para toda aquela multidão, o universo era aquele, não outro.
            A dada altura, a fila terminava. Não estaríamos a mais de uns passos. Tive, então, a certeza de ver uma gota de suor escorrer pela testa do meu acompanhante abaixo. Arrepiou-me e enojou-me. Mais uns degraus e encontrámo-nos diante da porta da Fininha, figura conhecida, eu próprio ouvira falar dela, e quem não ouvira, que controlava aquele negócio e, ao que parecia, nunca se deslocava ao exterior. Escutara histórias mirabolantes acerca dela… Que tinha uma banheira em ouro maciço. Que tinha diamantes e outras joias incrustadas naquelas paredes de cimento que não supus que diferissem do resto, ainda que a imaginação me permitisse ir mais além. Que se encontrava rodeada de um verdadeiro exército de mercenários que sempre a rodeava. É estranho, no fundo é como viver abastadamente numa prisão, raciocinei.
            A porta encontrava-se entreaberta, mas tornava-se complicado vislumbrar o interior de modo a compreendê-lo. Enquanto Luís controlava uma certa agitação que nitidamente tomara conta de si e fazia a sua compra, procurei, talvez com indisfarçada curiosidade, examinar o que poderia estar além da semiobscuridade daquela porta. Um indivíduo extremamente alto e encorpado como um barrote de aço tapou-me o campo de visão e, muito rudemente, mandou-me afastar:
            - Que é que foi, amigo? Está à procura de alguma coisa?
            - Não, nada. Peço desculpa.
            - Ah, bom. Mantém-te à distância!
            Obedeci. Sabia o que era bom para mim. Depois, descemos rapidamente a escadaria. Quase tropecei num grupo de pessoas que, entretanto, não pareceram dar por nada.
            Fizemos o caminho de volta e, desta feita, não me queixei da maratona. Mesmo se o regresso era sempre a subir. Tinha, honestamente, vontade de me afastar.
            Luís, simultaneamente calmo e tenso, estranho cocktail, levou-me junto ao meu automóvel e despediu-se sem grandes delongas:
            - Liga, pá. Temos que nos voltar a encontrar!
            Sorriu e arrancou ainda mais rapidamente do que antes. Fiquei a vê-lo desaparecer perigosamente na distância de uma curva.
            Por mim, tinha o que queria. Bom, não exatamente o que queria mas, pelo menos, uma ideia. Não tencionava voltar a falar com Luís tão cedo e não estava certo de que ele mesmo sentisse uma tão real vontade de se encontrar comigo tão depressa. Entrei no carro, liguei a ignição e, ainda tonto da experiência, regressei a casa com a chuvada ainda suspensa.









XIII

            O tempo arrastou-se e voou, conforme…
            Todos os anos, era tradição, a família reunia-se para a celebração do domingo de Páscoa, geralmente em casa de Joana, a eterna anfitriã. Aquele ano não foi exceção. Estava menos gente do que por vezes já sucedera mas era, achava eu, ainda assim, uma boa carga de trabalhos. Por isso mesmo, ofereci-me para ajudar no necessário até levar com duas ou três negas consecutivas. Ainda assim, apareci mais cedo e voltei, sem sucesso, a oferecer os meus préstimos. Já que lá estava e que era, aparentemente, inútil, aceitei partilhar um Martini que Mário me ofereceu, acompanhando-o com uma cigarrilha na varanda das traseiras.
            - Depois de tanto tempo… - disse-me – Não sabes que essas coisas acabam por te matar?
            Senti vontade de lhe explicar que estava basicamente morto. Mas calei-me e respondi apenas que era um passatempo, que todos precisamos de um passatempo, que estava tudo sob controlo e que poderia voltar a parar a qualquer instante. Ele fitou-me com ar de alguma dúvida e uma pancadinha no ombro.
            Nesse momento, entrou Carlos, o filho mais velho do casal, acompanhado da mais recente namorada, uma americana amorenada, de olhos azuis fundos, e deu-me um abraço. Patrícia não tinha, contrariamente a ele, conseguido tirar uns dias para nos visitar, apesar da distância mais curta.
            - Então, tio?
            Apontou para a cigarrilha que me ardia entre os dedos e, como num passe combinado, disse:
            - Isso ainda acaba por te matar!
            - Se fosse a ti, tinha mais cuidado com os aviões low cost em que te enfias… - respondi laconicamente, com um sorriso.
            Antes das duas, estávamos todos à mesa, prontos a trinchar o peru recheado, acompanhado de batata assada e as coisas do costume. Eu, o casal, o casalinho, uns velhos tios e uns primos com os filhos pequenos e difíceis de controlar, que não paravam quietos e exageravam na Coca-Cola, enquanto os adultos se serviam da adega da casa. Senti um desejo secreto de perguntar aos pais se não sabiam que aquilo ainda ia acabar por os matar ou algo no estilo, mas controlei-me. Parecia que a morte estava sempre presente. Para mim estava, com toda a certeza. No entanto, todos falavam, gargalhavam muito alto e os mais inspirados soltavam disparates improvisados, ignorando a contenção maior dos velhos tios. Como se a vida fosse sempre bela e eterna. Sim…
            O televisor estava ligado, passava o noticiário e, a certa altura, uma notícia chamou a atenção dos presentes. Um indivíduo de trinta e três anos, fora encontrado morto na entrada do seu bloco de apartamentos com uma seringa espetada no braço, numa veia do braço esquerdo. Tinham-lhe ainda descoberto diversas doses de heroína e uma certa quantidade de dinheiro, mais do que seria normal. O que mais alertara as autoridades, que já investigavam o caso, fora o facto de que se notava um par de marcas suspeitas no pescoço e ainda que morrera de uma embolia por ter injetado não heroína, mas ar, nada mais do que ar. Poder-se-ia tratar de uma vingança do submundo, algum tipo de luta entre gangues, nada era ainda certo. As filmagens do cadáver enchiam o ecrã, seguidas de testemunhos de indivíduos da zona, ora preocupados, ora indiferentes, ora com aquele sentido de vingança por nada de especial que normalmente se encontra adormecida em tantos… Agarrei a base da minha cadeira energicamente e estremeci.
            - Esta malta não para! De que é que se vão lembrar a seguir? – perguntou Mário, aparentemente chocado .
            - Não fazem cá falta nenhuma! Mais valia que se varressem todos uns aos outros. – sentenciou a tia Mafalda.
            Pedi licença para usar a casa de banho e retirei-me, deixando-os, a eles e aos seus comentários, para trás.

            Abri a porta e encerrei-me à chave no interior. Ainda o conseguia ver entontecido e, logo, inconsciente, tombado ao fundo das escadas como um saco de batatas inútil que, secretamente, me preenchia de raiva e vontade de o canibalizar. O coração acelerou-se-me num estranho déjà vu. Em redor, felizmente, tudo era silêncio. Fitei as minhas mãos de relance… Ocultas por um par de luvas brancas de latex descartável. Uma seringa justiceira. Consegui visualizar-lhe os olhos a revirar e sentir-lhe o derradeiro suspiro. Teria família, pais, filhos, amigos, namorada? Que importava! Eu. Ele. A vida entre nós. E a morte como consequência inevitável. Não pude conter-me e sorri alarvemente perante a imagem. Sorri, quase chorei, sorri de novo, agora ainda mais violentamente, e só quando senti que tudo estava sob controlo reabri a porta cuidadosamente e regressei ao meu lugar na mesa.

            Voltei-me para Mário e exclamei, num tom entusiasmado:
            - Estava a pensar… Um passarinho disse-me que tinhas umas garrafas secretas de Barca Velha. Se não fosse muita ousadia, permitir-nos-ias celebrar a Páscoa com um sangue verdadeiramente digno de Cristo?
            Afigurou-se-me que talvez alguns dos presentes se tenham sentido algo espantados com a minha súbita participação. Mas, após um instante muito breve, o ambiente aquecia e aqueceu ainda mais depois do Barca Velha que Mário, sempre solícito, trouxe da cave e, sobretudo, após o brinde que propus, erguendo o copo bem alto:
            - Longa vida a todos os presentes!
            - Longa vida! – escutou-se num coro.
            Após um gole que me soube pela vida, voltei-me para Carlos e para a namorada, Eileen, que se encontravam face a mim, do outro lado da mesa, e comecei a interrogá-los entusiasticamente, no meio do burburinho geral, acerca do que faziam e não faziam do outro lado do Atlântico.

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