XII
A tarde escurecera ainda mais e um
rebanho de nuvens trespassava os sentidos antes de, finalmente, esburacar caoticamente o
cérebro.
- Pá.. – disse assertivamente - …,
vamos ficar por aqui que não quero ficar sem carro e este custou-me a ganhar.
Ele é que sabia. Achei que seria provavelmente
sensato. Acenei concordantemente, saímos e seguimos pela rua que descia num
plano inclinado. Luís seguia com demasiada rapidez e tornava-se-me difícil
acompanhar-lhe o passo. Pedi-lhe que abrandasse um pouco.
- Ninguém vai morrer se demorarmos
mais uns minutos… A negritude pairava, ameaçando um intenso chuveiro. Luís, travou a
fundo e estacionou com tal precisão que pensei se tal se deveria à sorte ou se
a coca apurava assim os sentidos.
- Ouve lá, queres ir ver como é ou
não? É que se não queres, ficas por aqui, que eu conheço o caminho.
- Tem calma. Ok. Vamos lá. Mas está
a custar-me acompanhar-te.
- Falta de exercício, meu! Tens que
te inscrever num ginásio.
Entre a opção da coca e a do
ginásio, o raciocínio tornava-se, no mínimo, curioso. Sendo eu o interessado ou
sendo eu um dos interessados, por maior distância que pudesse haver entre as
razões de cada, acedi e prosseguimos em marcha. Talvez escapemos à chuvada se
nos despacharmos, pensei, num esboço de justificação.
Por fim, chegámos junto a uma
espécie de descampado que me trouxe à mente um daqueles cenários fílmicos americanos
do pós-Terceira Guerra. Estacámos, um instante apenas, no entanto o suficiente
para eu tirar a fotografia do conjunto. Eram grupos de edifícios extremamente
elevados em cimento cru e descascado, pousados num chão de terra batida. Uma
enormidade de grafitos selváticos e esquissados à toa. O senhorio não parecia
ter-se preocupado enormemente com a manutenção e interroguei-me se algum
arquiteto honesto se dignara olhar para lá. À entrada de uma das torres, na
distância e à vista de toda a cidade, polícia incluída, formava-se uma fila de
gente meio paciente, meio impaciente, mas certamente determinada. Não achei que
alguém nos cedesse o lugar, mas foi para lá que nos dirigimos. Pelo caminho,
senti-me observado com desconfiança e nada à-vontade. Ainda assim,
permitiam-nos seguir caminho sem nos darem um tiro ou uma tareia. Luís parecia
sentir-se mais em casa do que eu e, embora intimamente inquieto face àquele
mundo diferente, eu aproveitava a boleia.
Posicionámo-nos na fila e
aguardámos, aguardámos infinitamente enquanto subíamos a escadaria que rodeava
um grande vau interior cada vez mais elevado e estonteante e cruzávamos portas
de madeira barata, em estado extremamente degradado. A tonalidade do cimento
tornava-se opressiva. O corrimão, se assim quisermos chamar à parede baixa
externa onde nos segurávamos, era extremamente fino, parecendo poder sofrer uma
derrocada a qualquer instante. Manchas de humidade acumulada que, por vezes,
cediam lugar a fugas de água de que ninguém trataria, pintavam tetos e paredes,
aqui e ali. Os cheiros misturavam-se e eram, regra geral, bastante incómodos. A
fila avançava lentamente e a impaciência própria da expetativa começava a
sobressair entre muitos dos que nos acompanhavam. Pareceu-me ver uma gota de
suor escorrer na testa do próprio Luís. O mais interessante, ou o mais
incrível, era que sem dúvida muita gente morava ali, naquele universo deslocado
e quase bizarro. Bizarro para mim, especifiquei em pensamento. Para toda aquela
multidão, o universo era aquele, não outro.
A dada altura, a fila terminava. Não
estaríamos a mais de uns passos. Tive, então, a certeza de ver uma gota de suor
escorrer pela testa do meu acompanhante abaixo. Arrepiou-me e enojou-me. Mais
uns degraus e encontrámo-nos diante da porta da Fininha, figura conhecida, eu
próprio ouvira falar dela, e quem não ouvira, que controlava aquele negócio e,
ao que parecia, nunca se deslocava ao exterior. Escutara histórias mirabolantes
acerca dela… Que tinha uma banheira em ouro maciço. Que tinha diamantes e
outras joias incrustadas naquelas paredes de cimento que não supus que
diferissem do resto, ainda que a imaginação me permitisse ir mais além. Que se
encontrava rodeada de um verdadeiro exército de mercenários que sempre a
rodeava. É estranho, no fundo é como viver abastadamente numa prisão, raciocinei.
A porta encontrava-se entreaberta,
mas tornava-se complicado vislumbrar o interior de modo a compreendê-lo.
Enquanto Luís controlava uma certa agitação que nitidamente tomara conta de si
e fazia a sua compra, procurei, talvez com indisfarçada curiosidade, examinar o
que poderia estar além da semiobscuridade daquela porta. Um indivíduo
extremamente alto e encorpado como um barrote de aço tapou-me o campo de visão
e, muito rudemente, mandou-me afastar:
- Que é que foi, amigo? Está à
procura de alguma coisa?
- Não, nada. Peço desculpa.
- Ah, bom. Mantém-te à distância!
Obedeci. Sabia o que era bom para
mim. Depois, descemos rapidamente a escadaria. Quase tropecei num grupo de
pessoas que, entretanto, não pareceram dar por nada.
Fizemos o caminho de volta e, desta
feita, não me queixei da maratona. Mesmo se o regresso era sempre a subir. Tinha,
honestamente, vontade de me afastar.
Luís, simultaneamente calmo e tenso,
estranho cocktail, levou-me junto ao meu automóvel e despediu-se sem grandes
delongas:
- Liga, pá. Temos que nos voltar a
encontrar!
Sorriu e arrancou ainda mais
rapidamente do que antes. Fiquei a vê-lo desaparecer perigosamente na distância
de uma curva.
Por mim, tinha o que queria. Bom,
não exatamente o que queria mas, pelo menos, uma ideia. Não tencionava voltar a
falar com Luís tão cedo e não estava certo de que ele mesmo sentisse uma tão
real vontade de se encontrar comigo tão depressa. Entrei no carro, liguei a
ignição e, ainda tonto da experiência, regressei a casa com a chuvada ainda suspensa.
XIII
O tempo arrastou-se e voou,
conforme…
Todos os anos, era tradição, a
família reunia-se para a celebração do domingo de Páscoa, geralmente em casa de
Joana, a eterna anfitriã. Aquele ano não foi exceção. Estava menos gente do que
por vezes já sucedera mas era, achava eu, ainda assim, uma boa carga de
trabalhos. Por isso mesmo, ofereci-me para ajudar no necessário até levar com
duas ou três negas consecutivas. Ainda assim, apareci mais cedo e voltei, sem
sucesso, a oferecer os meus préstimos. Já que lá estava e que era,
aparentemente, inútil, aceitei partilhar um Martini que Mário me ofereceu,
acompanhando-o com uma cigarrilha na varanda das traseiras.
- Depois de tanto tempo… - disse-me
– Não sabes que essas coisas acabam por te matar?
Senti vontade de lhe explicar que
estava basicamente morto. Mas calei-me e respondi apenas que era um passatempo,
que todos precisamos de um passatempo, que estava tudo sob controlo e que
poderia voltar a parar a qualquer instante. Ele fitou-me com ar de alguma
dúvida e uma pancadinha no ombro.
Nesse momento, entrou Carlos, o
filho mais velho do casal, acompanhado da mais recente namorada, uma americana amorenada,
de olhos azuis fundos, e deu-me um abraço. Patrícia não tinha, contrariamente a
ele, conseguido tirar uns dias para nos visitar, apesar da distância mais
curta.
- Então, tio?
Apontou para a cigarrilha que me
ardia entre os dedos e, como num passe combinado, disse:
- Isso ainda acaba por te matar!
- Se fosse a ti, tinha mais cuidado com
os aviões low cost em que te enfias…
- respondi laconicamente, com um sorriso.
Antes das duas, estávamos todos à
mesa, prontos a trinchar o peru recheado, acompanhado de batata assada e as
coisas do costume. Eu, o casal, o casalinho, uns velhos tios e uns primos com
os filhos pequenos e difíceis de controlar, que não paravam quietos e exageravam
na Coca-Cola, enquanto os adultos se serviam da adega da casa. Senti um desejo
secreto de perguntar aos pais se não sabiam que aquilo ainda ia acabar por os
matar ou algo no estilo, mas controlei-me. Parecia que a morte estava sempre
presente. Para mim estava, com toda a certeza. No entanto, todos falavam,
gargalhavam muito alto e os mais inspirados soltavam disparates improvisados,
ignorando a contenção maior dos velhos tios. Como se a vida fosse sempre bela e
eterna. Sim…
O televisor estava ligado, passava o
noticiário e, a certa altura, uma notícia chamou a atenção dos presentes. Um
indivíduo de trinta e três anos, fora encontrado morto na entrada do seu bloco
de apartamentos com uma seringa espetada no braço, numa veia do braço esquerdo.
Tinham-lhe ainda descoberto diversas doses de heroína e uma certa quantidade de
dinheiro, mais do que seria normal. O que mais alertara as autoridades, que já investigavam
o caso, fora o facto de que se notava um par de marcas suspeitas no pescoço e
ainda que morrera de uma embolia por ter injetado não heroína, mas ar, nada
mais do que ar. Poder-se-ia tratar de uma vingança do submundo, algum tipo de
luta entre gangues, nada era ainda certo. As filmagens do cadáver enchiam o
ecrã, seguidas de testemunhos de indivíduos da zona, ora preocupados, ora
indiferentes, ora com aquele sentido de vingança por nada de especial que
normalmente se encontra adormecida em tantos… Agarrei a base da minha cadeira
energicamente e estremeci.
- Esta malta não para! De que é que
se vão lembrar a seguir? – perguntou Mário, aparentemente chocado .
- Não fazem cá falta nenhuma! Mais
valia que se varressem todos uns aos outros. – sentenciou a tia Mafalda.
Pedi licença para usar a casa de
banho e retirei-me, deixando-os, a eles e aos seus comentários, para trás.
Abri a porta e encerrei-me à chave
no interior. Ainda o conseguia ver entontecido e, logo, inconsciente, tombado ao
fundo das escadas como um saco de batatas inútil que, secretamente, me
preenchia de raiva e vontade de o canibalizar. O coração acelerou-se-me num
estranho déjà vu. Em redor,
felizmente, tudo era silêncio. Fitei as minhas mãos de relance… Ocultas por um
par de luvas brancas de latex descartável. Uma seringa justiceira. Consegui
visualizar-lhe os olhos a revirar e sentir-lhe o derradeiro suspiro. Teria
família, pais, filhos, amigos, namorada? Que importava! Eu. Ele. A vida entre
nós. E a morte como consequência inevitável. Não pude conter-me e sorri
alarvemente perante a imagem. Sorri, quase chorei, sorri de novo, agora ainda
mais violentamente, e só quando senti que tudo estava sob controlo reabri a
porta cuidadosamente e regressei ao meu lugar na mesa.
Voltei-me para Mário e exclamei, num
tom entusiasmado:
- Estava a pensar… Um passarinho
disse-me que tinhas umas garrafas secretas de Barca Velha. Se não fosse muita
ousadia, permitir-nos-ias celebrar a Páscoa com um sangue verdadeiramente digno
de Cristo?
Afigurou-se-me que talvez alguns dos
presentes se tenham sentido algo espantados com a minha súbita participação.
Mas, após um instante muito breve, o ambiente aquecia e aqueceu ainda mais
depois do Barca Velha que Mário, sempre solícito, trouxe da cave e, sobretudo,
após o brinde que propus, erguendo o copo bem alto:
- Longa vida a todos os presentes!
- Longa vida! – escutou-se num coro.
Após um gole que me soube pela vida,
voltei-me para Carlos e para a namorada, Eileen, que se encontravam face a mim,
do outro lado da mesa, e comecei a interrogá-los entusiasticamente, no meio do
burburinho geral, acerca do que faziam e não faziam do outro lado do Atlântico.
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