28.1.19

Ricardo - capítulos XXIV e XXV


XXIV

            Cheguei a casa, desliguei o computador e o televisor da tomada, o que nunca fazia, e fui-me deitar. Adormeci suavemente como o primeiro floco de neve de um inverno morno.
            Acordei, seriam umas três da manhã, com o coração a saltar-me do peito e alagado em suor. A estranha velha que certa vez se me dirigira na rua, tentava alcançar-me com os braços esfarrapados e gargalhava perdidamente com a sua boca desdentada onde sobravam alguns dentes ratados que soltavam um horrível odor a matéria podre. A pele encarquilhava-se-lhe como uma folha velha que atiramos para o cesto dos papéis num momento de mau humor. Estávamos num beco sem saída para qualquer dos lados, um espaço fechado sobre o qual pairava uma imensa lua cheia em tons sombrios e eu tentava, com dificuldade, escapar às suas arremetidas. Ouvi um gato miar nervosamente no pleno do seu cio e desviei o olhar momentaneamente para o procurar. Quando olhei de novo para a velha, encontrei-a estendida, em posição fetal, numa poça de sangue a que a lua emprestava reflexos. Lentamente, operou-se uma transformação e o cadáver rejuvenesceu diante do meu olhar atónito que a viu transmutar-se numa rapariga nova, atraente e bem vestida. Paulatinamente, o sangue tornou-se água clara. A própria lua soltou uma gargalhada enlouquecida sobre nós e despertei.
            Tropecei até ao quarto de banho e, inspirando fundo, passei o rosto por água fria que contrastava fortemente com o estio exagerado que cobria a cidade como há muitos anos não me recordava. Pausei um pouco, debruçado sobre o lavatório e regressei à cama. Uma vez mais, adormeci.
            Regressei ao mundo dos sonhos. Conversava com Ricardo, o meu Ricardo, já com dezassete anos.
            - Então, como têm corrido as coisas nas aulas?
            - Tudo bem.
            - Tens namorada ou quê?
            - Não me quero comprometer.
            - Bom, ter uma namorada não é exatamente igual a um comprometimento para a vida…
            - Sim, mas acho que me poderia distrair do essencial. Neste momento, estou mais preocupado em lutar por uma carreira. Quero ser alguém.
            - Ah, bom.
            - Pai, não me podias dar algum dinheiro para um concerto hoje à noite? Os meus amigos vão todos.
            - De quanto é que precisas?
            - Vinte euros devem chegar.
            Fui à carteira e passei-lhe vinte euros.
            - Espero que te divirtas. Depois, conta-me como foi.
            - É só música. Não é como no teu tempo, quando os pavilhões acabavam cobertos de garrafas partidas aos bocadinhos e tipos que tinham pago o concerto, adormecidos pelos cantos.
            Não estranhei o facto de me estar a falar de algo que eu mesmo nunca lhe tinha contado. Deu-me um quente abraço e um beijo e disse:
            - Vou-me deitar.
            - Já vais?
            - Sim. Amanhã de manhã tenho aulas logo ao primeiro tempo.
            Sorri satisfeito, apesar de, de algum modo, saber que o dia seguinte era domingo e que a conversa não tinha sentido. Ricardo subiu para o seu quarto. Escutei-lhe os passos calmos. Não podia querer melhor filho! Deixei-me ficar por instantes, estirado no sofá, enquanto o televisor passava desenhos animados. Subitamente, apercebi-me de que Ricardo esquecera o pijama nas costas da cadeira e decidi subir para lho entregar.
            Bati à porta e ninguém respondeu. Já terá adormecido?, pensei, ponderando se, nesse caso, o deveria acordar. Decidi bater de novo. Silêncio total. Aguardei. Bati uma vez mais. Nada. Abri a porta com cuidado e deparei com a cena que sempre me perseguira: Ricardo estendido na cama, os olhos revirados, o fio de sangue e espuma entre os lábios, meio limão, uma colher oxidada, uma prata e a seringa que lhe pendia do braço, balouçante.
            - Ricardo! – exclamei num desespero que me saltou das entranhas.
            O meu filho ergueu-se, sentou-se na borda da cama e, sorrindo, disse:
            - Pai, eu adoro-te. Desculpa, só queria saber como era…
            Subitamente uma revoada densa de pombas brancas entrou pela janela aberta onde nem mais nem menos do que Hitchcock me fitava com um charuto distraído entre os dedos e acordei. Já era de manhã e, pela primeira vez no prazo de um ano, passara a noite a sonhar. Envolto em pesadelos. Não é que os pesadelos correspondam ao que chamamos realidade, mas conseguem ser consideravelmente mais intensos. Fazia precisamente um ano desde o dia em que o meu filho, Ricardo, não a sua recordação, e as recordações podem doer como ferros de marcar gado, me abandonara quase certamente para a eternidade. Algum tipo de angústia inqualificável apoderou-se de mim como uma tenaz e um arrepio percorreu-me a coluna. Por momentos, fiquei totalmente paralisado, as pálpebras cerradas ao ponto de doerem. Depois, chegado de algum ponto recôndito do meu cérebro, em crescendo, por fim em diminuendo, senti o tema de que há tempos não me lembrava: “Just because you feel it, it doesn’t mean it’s there (…) We are all accidents waiting to happen”… Just because you feel it, it doesn’t mean it’s there". Reabri os olhos. Magicamente, como chegara, partira. E a angústia desvanecera-se como a espuma marítima na areia, deixando atrás de si apenas algum sal: o do mar como o dos meus olhos. Vós sois o sal da terra…

            Verifiquei as horas… Passava do meio-dia. Dormira muito, como por uma vida inteira que se desenrolasse diante de mim. Sentia-me, agora, estranhamente relaxado, como que caminhando sobre nuvens. Deixei de lado o duche matinal e a barba e vesti umas calças de ganga velhas, uma t-shirt larga e negra sem marca e um par de sapatilhas gastas. Aprontei-me. Lá fora, o sol ardia. Dentro de casa, no entanto, com as persianas semicerradas, não era sequer possível pressenti-lo exatamente. Dirigi-me à cozinha e bebi, do cartão, o que restava de leite gelado. Senti-me como se merecesse uma refeição muito completa, preparada por um chef renomado, finalizada por um rico charuto cubano, mas achei que não valia a pena. Para mais, nunca apreciara charutos. Saí por instantes e reentrei. De seguida, subi as escadas, dirigi-me ao quarto de Ricardo e fechei a porta atrás de mim.
            Tudo no quarto se desvanecera. Fiquei, sim, por largos instantes, fixo na cama vazia. Aproximei-me, coloquei sobre a almofada branca uma rosa vermelha que acabara de recolher no nosso quintal, senti o cheiro misturado que emanava da flor e da almofada e, ainda que não totalmente convicto, ajoelhei-me e rezei um Pai Nosso, a única oração completa que ainda me sobrava na memória da infância longínqua. Então, ainda que duvidoso de que alguém me escutasse, falei com Deus e, sobretudo, com Ricardo, em pensamento. Com os olhos húmidos, beijei profundamente aquele pedaço de tecido feito para encostar a cabeça quando se dorme, a coisa mais próxima do meu filho que, naquele momento, senti, voltei costas e parti.

            Estacionei junto ao bairro do Laranjal e desci o caminho de terra, contendo a pressa, olhado pelo canto do olhar pelos habitantes que me viam e esforçando-me por os ignorar. Com sorte, nenhum se lembraria de me dirigir a palavra. Cheguei junto à torre da Fininha e juntei-me à fila que se formava, naquele momento, a partir de metade da escadaria e aguardei, ascendendo lentamente, mais sereno do que se me enrodilhasse numa fila nas Finanças, indiferente ao cheiro a podridão e decadência que emanava descaradamente da construção e daqueles seres amontoados de dentes podres e corpos por lavar, de olhar vidrado. Sentia um burburinho na atmosfera, mas parecia-me que irradiava de uma estranha dimensão que me era alheia.
            A subida foi longa mas, não tardou, estava junto à porta encostada, de cujo interior me chegavam ruídos e vozes indescortináveis. O indivíduo que se encontrava à minha frente desapareceu apressadamente escada abaixo e, apenas por um momento, senti um arrepio instantâneo percorrer-me de alto a baixo. Durante esse momento, tão exato, senti que poderia ficar ou partir…
            Bati à porta e surgiu-me precisamente o gorila com quem me deparara na minha primeira visita.
            - Ó amigo, o que é que………
            Antes que pudesse terminar a frase, cravei-lhe uma faca de cozinha perto do umbigo, a mais afiada que encontrara nas gavetas, enterrei-lha até ao fundo dos intestinos e rodei-a energicamente, enquanto sentia o sangue quente e viscoso escorrer-me das mãos para os braços e para o chão de cimento carcomido.
            - Não sou teu amigo, porco! – rosnei-lhe ao ouvido.
            A confusão instalou-se e os clientes pisotearam-se escada abaixo. Acho que alguém se deve ter desequilibrado na berma fina e dado o maior trambolhão da sua vida encurtada. Um grupo de indivíduos musculados, uns grandes, outros pequenos, irromperam do interior, de armas apontadas para mim. Enquanto me atingiam quase à queima-roupa, eu sorria de prazer e de dor, fazendo rebentar a carga de explosivos que trazia colada ao peito e à barriga, que secretamente vinha preparando há tempos na minha garagem, uma pequena rodilha como uma pequena bomba nuclear que transformou os corpos culpados e inocentes de todos em pequenas partículas indecifráveis entre a poeira cinzenta estilhaçada do edifício que alagou o bairro e que, com estrondo, deve ter alarmado toda a cidade. A mim, que há tanto tinha já morrido, tanto me fazia, excetuando-se a satisfação de nunca ter deixado um projeto a meio. Não sei de mais…














                                                                  XXV

            Flutuo… Ou flutuo teoricamente naquele lado de onde nunca ninguém me chegou para contar o que por lá se passa.

            Tratei antecipadamente de deixar, em testamento, o meu gabinete aos meus funcionários, colegas e amigos que, estou certo, o saberão levar mais longe do que eu o poderia fazer. O resto, casa, contas pessoais, uma pequena propriedade que tinha nas encostas do Douro, deixei a Joana. Deixei ainda a minha memória a todos e cada um poderá julgá-la como melhor entender. Será, com toda a certeza, mais importante para os outros do que para mim. E, em todo o caso, um julgamento passageiro, porque tudo é passageiro. Se é que isso me pode interessar minimamente…

            Não vejo Deus, nem o diabo, nem Ricardo, e como gostaria de o ver!, nem os meus pais, nem ninguém que tenha partido, nem nenhum túnel de luz, nem espíritos guias que me indiquem o caminho. Flutuo simplesmente. E sinto uma paz e uma ausência de culpa e obrigação como nunca senti nem soube poder sentir.

            Solucionei alguma coisa? Trouxe Ricardo de volta à vida? Trouxe-me a mim ou a alguém de volta à vida? Impedi que o mundo continuasse a rolar baseado em dinheiro e em agendas como sempre funcionou? Negativo. A resposta é basicamente negativa. De alguma forma, no entanto, vinguei o meu filho e outros filhos e todos os desgraçados que matei na torre do Laranjal e não vacilei nas minhas decisões. Ou é-me, pelo menos, agradável sentir que assim foi.

            Flutuo concluído, dou lugar a outros e é tudo…


Jorge Simões, 2014

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