XX
A
primavera avançava, num misto de tons invernais e mornidões ocasionais, e o
fatídico verão aproximava-se. O Luís recuperara miraculosamente da sua aventura
pelas bases de coca e pelo sono eterno, the
long sleep, que abeirara, aparentemente encontrara trabalho de monta numa
empresa conhecida e já ninguém pensava muito nisso. Uma vez mais, aterrara
espantosamente de pé, como os gatos e as suas sete vidas, nove para os ingleses
que têm gatos aparentemente mais robustos. Os pensamentos pareciam rodear-me
exclusivamente a mim, como um imenso tornado que arrastava toda a minha vida
pelos ares. E quem o sabia senão eu? Regressei à praia das minhas recordações
num dia ensolarado que alguns banhistas mais afoitos, bem distribuídos pelo
areal, tomavam já por plena época estival.
Descalcei-me junto à amurada, segui
em linha reta como alguém que pretende naufragar de forma absolutamente
consciente e caminhei paralelo ao oceano, ao longo da ondulação gélida que me
chegava aos calcanhares. De algum modo, sabia-me bem porque quase me
despertava. Segui, pensando e guardando os pensamentos para mim. Tinha vindo a
tornar-me um especialista na matéria.
A polícia não tinha conseguido ligar
os réus de que João me falara a todos os acontecimentos, parecia haver lacunas
como grandes lagos e buracos tipo queijo suíço e, ainda assim, tinham julgamento
marcado. Interessante… Pessoalmente, tinha decidido deixar os pequenos dealers à solta e isso, provavelmente,
baralharia ainda mais as cartas cuja sequência só eu conhecia. Sim, sentia uma
espécie de pequena dormência que me empurrava na sua direção, mas sempre fora
suficientemente forte para resistir às tentações e como alguém um dia dissera: Just say no. Que piada!
O sol ia enfraquecendo e decaindo no
céu pintalgado de escassas nuvens esguias. Era um céu bonito e vibrava sobre o
planeta, quase escondendo eficazmente toda a maldade, toda a podridão e todos
os segredos inconfessados sob o seu manto de prestidigitação.
Fixei o horizonte por instantes e
continuei a caminhar. Visualizei-me, eu e Ricardo de mão dada, os dois sentados
na areia. Era um dia assim e muitos outros dias diferentes. Eu inventava
histórias instantâneas e ele escutava extasiado, boquiaberto. Eram aventuras repletas
de bons e maus, armadilhas imprevisíveis, feitos sobre-humanos, cavernas e
laboratórios escondidos sob o solo, soldados cobertos por máscaras poderosas,
monstros que lançavam bolas de fogo. Ricardo ria, abraçava-se-me vigorosamente
e pedia mais. Depois, recordei a noite em que, já mais crescido, regressara de
uma festa de carnaval e, ao entrar, quarto dentro, vomitara várias vezes, numa
sequência quase matemática, antes de se atirar para cima do edredão. “Pelo
menos, servir-lhe-á de lição. De certeza”, racionalizara eu na altura. Mais do que
provavelmente, enganara-me.
O sol escondia-se, agora, no fundo
do oceano, barrando-o inteiro de um supra arco-íris mirabolante e fiquei
paralisado, em pé, a olhá-lo. Subitamente, todas as recordações se me varreram
e, com elas, o próprio pensamento, transmutado em puro instinto. Era um mar
bonito sob um céu bonito.
Quando, enfim, decidi que seria hora
de partir, voltei-me de novo para trás, numa derradeira contemplação, e assisti
a um espetáculo tão real que me doeu como doem, por vezes, certos filmes a que
assistimos, pedaços de scripts em que
sabemos que tudo é a fingir…
À frente, na raia da maré, um velho muito
enrugado arrastava-se, curvado e apoiado a uma bengala, lento, lento, como
alguém que se recusa a morrer antes, pelo menos, de um último pôr-do-sol num
dia bonito, antes da noite cerrada. Logo atrás, um jovem correu, deu um perfeito
salto mortal e aterrou de pé na areia húmida, saudado pelos gritos e aplausos
dos companheiros que seguiam um pouco atrás. O homem velho não pareceu
aperceber-se da proeza do jovem, do mesmo modo que o jovem não aparentou dar-se
conta da presença do homem velho.
Na distância, uma gaivota mergulhou,
regressou com um peixe na boca, planou num círculo e soltou um estridente
guincho de vitória.
XXI
O dia aproximava-se…
Certa manhã, uma manhã ventosa,
tinha consulta para uma limpeza no dentista e caminhava apressadamente pelas
ruas, preocupado com as horas, se bem que consciente de que é um facto da vida
que os dentistas nos deixam sempre à espera.
Foi ao virar de uma esquina que dei
de caras com a cena… Uma carrinha do INEM, a polícia, a fita plástica que
impede a passagem e a curiosidade excessiva dos transeuntes e, bem no centro,
junto a umas pequenas galerias comerciais, um corpo amortalhado sob um pano
branco. Alguém, descuidado ou dono de um sentido de humor macabro, permitira
que uma mão de cera gasta extravasasse da mortalha para o passeio de cimento
onde repousava intocada. Uma mulher mais comunicativa, tendo talvez notado a
minha inexpressão estática, apressou-se a colocar-me ao corrente dos factos. A
morta tinha dito à filha que ia até ao quarto ler um pouco. Feito isso,
lançara-se da varanda do sexto andar e aterrara como um saco de batatas na
calçada, quase atingindo um peão inocente no caminho. Aparentemente, ainda uma
semana antes um homem se atirara de um nono andar, não muito longe dali.
Trágico, sim, concordei, já mentalmente distante, enquanto a minha
interlocutora continuava a tecer considerações. A mulher da mortalha já não se
podia importar. Senti um desejo, não sei se de choque, se de sadismo menor ou
de outra coisa qualquer, de comunicar a ocorrência à minha irmã e teclei o
número no meu telemóvel. Curiosamente, não foi Joana a atender e sim Mário.
- A Joana foi fazer umas compras e
eu fiquei a tomar conta da casa. – riu.
Contei-lhe a história. Seria mais
natural que Mário, por ser jornalista de profissão, estivesse algures a cobrir
uma notícia repetida, mas não foi.
- Isto está pior do que as pessoas
imaginam. Sabes que mesmo nós, na comunicação social, somos pressionados a não
noticiar o que tem vindo a acontecer para que outras pessoas não sejam
incentivadas a tomar o mesmo caminho…
- Desculpa, o que tem vindo a
acontecer? Qual caminho? – perguntei, meio confundido.
- É natural que não saibas. Mas,
basicamente, não passa um dia sem que alguém se atire do cimo das pontes. É
muito mau. Ultimamente, o número de suicídios tem sido enorme. – pausou - Olha,
quando é que queres vir cá jantar ou, mais que não seja, beber um copo?
Esqueceste-te de nós?
Quando desliguei, depois de um
último olhar à suicida aparentemente pouco original, enquanto passava ao lado
das barreiras e dos presentes que se atarefavam ou a trabalhar ou a comentar,
decidi que não tinha que ir à consulta. No fim de contas, para que é que precisava
de uma limpeza dentária? Nem me passou pela cabeça avisar que ia faltar. Não
seria necessário.
Embora nunca me tenha considerado
católico, o caminho levou-me à entrada de uma velha igreja que,
miraculosamente, ou misteriosamente, como os religiosos tanto gostam de
considerar, à falta de explicações mais concretas para as coisas da vida, reais
ou inventadas, tinha as largas portas de madeira abertas aos crentes.
Entrei como entraria um fiel. Ainda
ninguém inventara uma máquina que lesse pensamentos, convicções e intuições e a
igreja, vazia no interior, parecia pouco precisada de barrar o caminho a quem
quer que fosse. Se fosse um repórter, um arquiteto naquele momento efetivamente
interessado em patrimónios ou um determinado tipo de escritor, saberia
descrever os tetos, os chãos, as paredes. Na verdade, só recordo que era um
local fresco, silencioso e mergulhado numa certa penumbra. Espreitei à
esquerda, não longe de um São Sebastião cravado de flechas e de um Jesus Cristo
de coração nas mãos, parece que afinal recordo algo mais, e vi o
confessionário. Interroguei-me se estaria alguém no interior e senti um impulso
nada frequente em mim, que não me confessava desde os tempos da escola
primária, quando nos empurravam literalmente para a confissão pascal. Quando
dei por mim, estava sentado junto a um cubículo onde efetivamente se encontrava
um padre.
- Padre, desejo confessar-me. – disse,
numa voz sumida.
- Sim, meu irmão. O que o traz por
cá?
- Sou um assassino.
Pausa.
-
Perdão?
-
Sou um assassino.
Nova
pausa.
-
Bom, o que é quer dizer com isso? O que fez?
-
Quero dizer precisamente isso: que sou um assassino. Mato pessoas. Bom, pessoas
que considero animais. Não é que esteja bem matar animais, mas acho que há
certos animais que vivem numa espécie de submundo dos animais.
O
padre disfarçou o choque e interrogou:
-
Com certeza que quer falar mais sobre isso…
-
Com certeza.
- Então,
diga…
- Já
ouviu falar no caso dos dealers que
aparecem mortos com uma injeção de ar nas veias…
- O
que é um dealer?
- Um
pusher. Um vendedor de droga. Enfim,
ele mesmo um assassino.
O
padre deve ter ficado confuso. Pode talvez ter imaginado que eu era um daqueles
falsos culpados que se autoacusam sempre que há um crime mais mediático.
-
Sim, já sei. Eu acompanho as notícias. Mas, note, a polícia já apanhou os
culpados. Tratou-se de lutas entre malfeitores. Não lê as notícias?
- Há
anos que nem por isso. Vou vendo alguns noticiários na televisão. Então, o
padre conclui que eu devo ser uma espécie de maluquinho cheio de algum desejo
de autopunição ou reconhecimento?
O
padre voltou a pausar. Escutei-lhe um suspiro.
- E
tem provas do que diz?
- Se
eu tenho provas? Claro. Mas mais ninguém as tem. Nem vai ter.
- É
que se realmente for culpado do que afirma, isso é muito grave.
-
Tão grave como condenar Job a uma vida de miséria por causa de uma aposta ou
capar uma desgraçada duma figueira porque não dá figos?
-
Parece-me que está a entrar em áreas que não compreende.
- E
o padre compreende? Explique-me, então, porque eu sempre tive vontade, para não
dizer necessidade, de entender essas histórias.
-
Bom… - prosseguiu o padre -…, acho que nos estamos a desviar do assunto
principal. Dizia, então, que tem provas de ser o assassino…
-
Sim, mas não me considero um assassino.
-
Não está a fazer sentido. Começou por dizer que era um assassino.
-
Isso foi para simplificar. O facto é que se matei quem matei e mataria muitos
mais da mesma laia é porque merecem. Se houvesse muita gente como eu no mundo,
muita mais poderia ser poupada.
-
Pode ser. Mas também sabe que um dos Mandamentos é “Não Matarás”…
-
Nunca matou uma melga?
-
Sim, mas uma melga não é uma pessoa.
- E
essas pessoas também não são pessoas.
- Se
o que diz é verdade, não tem perdão aos olhos de Deus. Por piores que possa
considerar os indivíduos que matou. Ou os que mataria. Ou, Deus sabe, os que
matará.
-
Mas isso é-me completamente indiferente, padre.
- É-lhe
completamente indiferente? Então que veio cá fazer?
-
Não me vim gabar de nada. Vim apenas falar de mim. Do que não posso contar a
mais ninguém. Um psiquiatra tem obrigação de sigilo mas custa dinheiro. Um
padre não custa dinheiro, tem obrigação de sigilo e não me procura internar ou,
pelo menos, fazer engolir comprimidos. Além disso, aconteceu passar à beira de
uma igreja. E foi assim. O padre já percebeu que não pode contar a
absolutamente ninguém que esteve a falar com o verdadeiro assassino dos dealers, certo?
Ponderou
largos instantes e retorquiu:
- É
verdade. Mas também não lhe posso conceder a absolvição. Que Deus tenha piedade
de si…
- Se
existir, há de ter. Ou não. Deus é uma personagem muito complicada. Um bom
resto de tarde, padre.
Ergui-me
e saí, reto no meu passo, tal como entrara. À saída, nenhum raio me atingiu. E
não me preocupei muito por ter causado um embaraço ao padre… No fundo, era
apenas uma pessoa e, se não tivesse abraçado a religião, quem sabe se não
poderia dedicar-se à venda de droga a adolescentes imaturos e a outros,
precocemente envelhecidos, com cara de fruto ressequido, cabeça de água mole e
veias a borbulhar doença?
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