7.1.19

Ricardo - capítulos XX e XXI


XX

            A primavera avançava, num misto de tons invernais e mornidões ocasionais, e o fatídico verão aproximava-se. O Luís recuperara miraculosamente da sua aventura pelas bases de coca e pelo sono eterno, the long sleep, que abeirara, aparentemente encontrara trabalho de monta numa empresa conhecida e já ninguém pensava muito nisso. Uma vez mais, aterrara espantosamente de pé, como os gatos e as suas sete vidas, nove para os ingleses que têm gatos aparentemente mais robustos. Os pensamentos pareciam rodear-me exclusivamente a mim, como um imenso tornado que arrastava toda a minha vida pelos ares. E quem o sabia senão eu? Regressei à praia das minhas recordações num dia ensolarado que alguns banhistas mais afoitos, bem distribuídos pelo areal, tomavam já por plena época estival.
            Descalcei-me junto à amurada, segui em linha reta como alguém que pretende naufragar de forma absolutamente consciente e caminhei paralelo ao oceano, ao longo da ondulação gélida que me chegava aos calcanhares. De algum modo, sabia-me bem porque quase me despertava. Segui, pensando e guardando os pensamentos para mim. Tinha vindo a tornar-me um especialista na matéria.
            A polícia não tinha conseguido ligar os réus de que João me falara a todos os acontecimentos, parecia haver lacunas como grandes lagos e buracos tipo queijo suíço e, ainda assim, tinham julgamento marcado. Interessante… Pessoalmente, tinha decidido deixar os pequenos dealers à solta e isso, provavelmente, baralharia ainda mais as cartas cuja sequência só eu conhecia. Sim, sentia uma espécie de pequena dormência que me empurrava na sua direção, mas sempre fora suficientemente forte para resistir às tentações e como alguém um dia dissera: Just say no. Que piada!
            O sol ia enfraquecendo e decaindo no céu pintalgado de escassas nuvens esguias. Era um céu bonito e vibrava sobre o planeta, quase escondendo eficazmente toda a maldade, toda a podridão e todos os segredos inconfessados sob o seu manto de prestidigitação.
            Fixei o horizonte por instantes e continuei a caminhar. Visualizei-me, eu e Ricardo de mão dada, os dois sentados na areia. Era um dia assim e muitos outros dias diferentes. Eu inventava histórias instantâneas e ele escutava extasiado, boquiaberto. Eram aventuras repletas de bons e maus, armadilhas imprevisíveis, feitos sobre-humanos, cavernas e laboratórios escondidos sob o solo, soldados cobertos por máscaras poderosas, monstros que lançavam bolas de fogo. Ricardo ria, abraçava-se-me vigorosamente e pedia mais. Depois, recordei a noite em que, já mais crescido, regressara de uma festa de carnaval e, ao entrar, quarto dentro, vomitara várias vezes, numa sequência quase matemática, antes de se atirar para cima do edredão. “Pelo menos, servir-lhe-á de lição. De certeza”, racionalizara eu na altura. Mais do que provavelmente, enganara-me.
            O sol escondia-se, agora, no fundo do oceano, barrando-o inteiro de um supra arco-íris mirabolante e fiquei paralisado, em pé, a olhá-lo. Subitamente, todas as recordações se me varreram e, com elas, o próprio pensamento, transmutado em puro instinto. Era um mar bonito sob um céu bonito.
            Quando, enfim, decidi que seria hora de partir, voltei-me de novo para trás, numa derradeira contemplação, e assisti a um espetáculo tão real que me doeu como doem, por vezes, certos filmes a que assistimos, pedaços de scripts em que sabemos que tudo é a fingir…
            À frente, na raia da maré, um velho muito enrugado arrastava-se, curvado e apoiado a uma bengala, lento, lento, como alguém que se recusa a morrer antes, pelo menos, de um último pôr-do-sol num dia bonito, antes da noite cerrada. Logo atrás, um jovem correu, deu um perfeito salto mortal e aterrou de pé na areia húmida, saudado pelos gritos e aplausos dos companheiros que seguiam um pouco atrás. O homem velho não pareceu aperceber-se da proeza do jovem, do mesmo modo que o jovem não aparentou dar-se conta da presença do homem velho.
            Na distância, uma gaivota mergulhou, regressou com um peixe na boca, planou num círculo e soltou um estridente guincho de vitória.





XXI

            O dia aproximava-se…

            Certa manhã, uma manhã ventosa, tinha consulta para uma limpeza no dentista e caminhava apressadamente pelas ruas, preocupado com as horas, se bem que consciente de que é um facto da vida que os dentistas nos deixam sempre à espera.
            Foi ao virar de uma esquina que dei de caras com a cena… Uma carrinha do INEM, a polícia, a fita plástica que impede a passagem e a curiosidade excessiva dos transeuntes e, bem no centro, junto a umas pequenas galerias comerciais, um corpo amortalhado sob um pano branco. Alguém, descuidado ou dono de um sentido de humor macabro, permitira que uma mão de cera gasta extravasasse da mortalha para o passeio de cimento onde repousava intocada. Uma mulher mais comunicativa, tendo talvez notado a minha inexpressão estática, apressou-se a colocar-me ao corrente dos factos. A morta tinha dito à filha que ia até ao quarto ler um pouco. Feito isso, lançara-se da varanda do sexto andar e aterrara como um saco de batatas na calçada, quase atingindo um peão inocente no caminho. Aparentemente, ainda uma semana antes um homem se atirara de um nono andar, não muito longe dali. Trágico, sim, concordei, já mentalmente distante, enquanto a minha interlocutora continuava a tecer considerações. A mulher da mortalha já não se podia importar. Senti um desejo, não sei se de choque, se de sadismo menor ou de outra coisa qualquer, de comunicar a ocorrência à minha irmã e teclei o número no meu telemóvel. Curiosamente, não foi Joana a atender e sim Mário.
            - A Joana foi fazer umas compras e eu fiquei a tomar conta da casa. – riu.
            Contei-lhe a história. Seria mais natural que Mário, por ser jornalista de profissão, estivesse algures a cobrir uma notícia repetida, mas não foi.
            - Isto está pior do que as pessoas imaginam. Sabes que mesmo nós, na comunicação social, somos pressionados a não noticiar o que tem vindo a acontecer para que outras pessoas não sejam incentivadas a tomar o mesmo caminho…
            - Desculpa, o que tem vindo a acontecer? Qual caminho? – perguntei, meio confundido.
            - É natural que não saibas. Mas, basicamente, não passa um dia sem que alguém se atire do cimo das pontes. É muito mau. Ultimamente, o número de suicídios tem sido enorme. – pausou - Olha, quando é que queres vir cá jantar ou, mais que não seja, beber um copo? Esqueceste-te de nós?
            Quando desliguei, depois de um último olhar à suicida aparentemente pouco original, enquanto passava ao lado das barreiras e dos presentes que se atarefavam ou a trabalhar ou a comentar, decidi que não tinha que ir à consulta. No fim de contas, para que é que precisava de uma limpeza dentária? Nem me passou pela cabeça avisar que ia faltar. Não seria necessário.

            Embora nunca me tenha considerado católico, o caminho levou-me à entrada de uma velha igreja que, miraculosamente, ou misteriosamente, como os religiosos tanto gostam de considerar, à falta de explicações mais concretas para as coisas da vida, reais ou inventadas, tinha as largas portas de madeira abertas aos crentes.
            Entrei como entraria um fiel. Ainda ninguém inventara uma máquina que lesse pensamentos, convicções e intuições e a igreja, vazia no interior, parecia pouco precisada de barrar o caminho a quem quer que fosse. Se fosse um repórter, um arquiteto naquele momento efetivamente interessado em patrimónios ou um determinado tipo de escritor, saberia descrever os tetos, os chãos, as paredes. Na verdade, só recordo que era um local fresco, silencioso e mergulhado numa certa penumbra. Espreitei à esquerda, não longe de um São Sebastião cravado de flechas e de um Jesus Cristo de coração nas mãos, parece que afinal recordo algo mais, e vi o confessionário. Interroguei-me se estaria alguém no interior e senti um impulso nada frequente em mim, que não me confessava desde os tempos da escola primária, quando nos empurravam literalmente para a confissão pascal. Quando dei por mim, estava sentado junto a um cubículo onde efetivamente se encontrava um padre.
            - Padre, desejo confessar-me. – disse, numa voz sumida.
            - Sim, meu irmão. O que o traz por cá?
            - Sou um assassino.
Pausa.
- Perdão?
- Sou um assassino.
Nova pausa.
- Bom, o que é quer dizer com isso? O que fez?
- Quero dizer precisamente isso: que sou um assassino. Mato pessoas. Bom, pessoas que considero animais. Não é que esteja bem matar animais, mas acho que há certos animais que vivem numa espécie de submundo dos animais.
O padre disfarçou o choque e interrogou:
- Com certeza que quer falar mais sobre isso…
- Com certeza.
- Então, diga…
- Já ouviu falar no caso dos dealers que aparecem mortos com uma injeção de ar nas veias…
- O que é um dealer?
- Um pusher. Um vendedor de droga. Enfim, ele mesmo um assassino.
O padre deve ter ficado confuso. Pode talvez ter imaginado que eu era um daqueles falsos culpados que se autoacusam sempre que há um crime mais mediático.
- Sim, já sei. Eu acompanho as notícias. Mas, note, a polícia já apanhou os culpados. Tratou-se de lutas entre malfeitores. Não lê as notícias?
- Há anos que nem por isso. Vou vendo alguns noticiários na televisão. Então, o padre conclui que eu devo ser uma espécie de maluquinho cheio de algum desejo de autopunição ou reconhecimento?
O padre voltou a pausar. Escutei-lhe um suspiro.
- E tem provas do que diz?
- Se eu tenho provas? Claro. Mas mais ninguém as tem. Nem vai ter.
- É que se realmente for culpado do que afirma, isso é muito grave.
- Tão grave como condenar Job a uma vida de miséria por causa de uma aposta ou capar uma desgraçada duma figueira porque não dá figos?
- Parece-me que está a entrar em áreas que não compreende.
- E o padre compreende? Explique-me, então, porque eu sempre tive vontade, para não dizer necessidade, de entender essas histórias.
- Bom… - prosseguiu o padre -…, acho que nos estamos a desviar do assunto principal. Dizia, então, que tem provas de ser o assassino…
- Sim, mas não me considero um assassino.
- Não está a fazer sentido. Começou por dizer que era um assassino.
- Isso foi para simplificar. O facto é que se matei quem matei e mataria muitos mais da mesma laia é porque merecem. Se houvesse muita gente como eu no mundo, muita mais poderia ser poupada.
- Pode ser. Mas também sabe que um dos Mandamentos é “Não Matarás”…
- Nunca matou uma melga?
- Sim, mas uma melga não é uma pessoa.
- E essas pessoas também não são pessoas.
- Se o que diz é verdade, não tem perdão aos olhos de Deus. Por piores que possa considerar os indivíduos que matou. Ou os que mataria. Ou, Deus sabe, os que matará.
- Mas isso é-me completamente indiferente, padre.
- É-lhe completamente indiferente? Então que veio cá fazer?
- Não me vim gabar de nada. Vim apenas falar de mim. Do que não posso contar a mais ninguém. Um psiquiatra tem obrigação de sigilo mas custa dinheiro. Um padre não custa dinheiro, tem obrigação de sigilo e não me procura internar ou, pelo menos, fazer engolir comprimidos. Além disso, aconteceu passar à beira de uma igreja. E foi assim. O padre já percebeu que não pode contar a absolutamente ninguém que esteve a falar com o verdadeiro assassino dos dealers, certo?
Ponderou largos instantes e retorquiu:
- É verdade. Mas também não lhe posso conceder a absolvição. Que Deus tenha piedade de si…
- Se existir, há de ter. Ou não. Deus é uma personagem muito complicada. Um bom resto de tarde, padre.
Ergui-me e saí, reto no meu passo, tal como entrara. À saída, nenhum raio me atingiu. E não me preocupei muito por ter causado um embaraço ao padre… No fundo, era apenas uma pessoa e, se não tivesse abraçado a religião, quem sabe se não poderia dedicar-se à venda de droga a adolescentes imaturos e a outros, precocemente envelhecidos, com cara de fruto ressequido, cabeça de água mole e veias a borbulhar doença?

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