1.1.19

Ricardo - capítulos XVIII e XIX


XVIII

            A raiva não dura muito e a calma ou, pelo menos, alguma calma, substitui-a. Encomendei uma pizza, desliguei os telefones, refastelei-me no sofá frente à TV e zapei o mais que pude. Incrível que quando basicamente não havia canais e os mesmos se desligavam muito cedo ao som do hino nacional parecia haver programação. Agora, nada se revelava satisfatório. Sinal dos tempos e da sociedade de consumo no seu melhor, pensei. A dita sociedade tinha, mais que não fosse, a virtualidade de criar e manter postos de trabalho, mesmo se pagos a 500 euros mensais ou deslocalizados para os confins do universo. De outra forma, haveria mais gente a cavar batatas, a embebedar-se nas tascas locais ao som do nosso restrito calão exclamativo, enquanto jogavam suecas infindáveis com baralhos sebentos, e a matar conterrâneos à sacholada por um rego de água ou a envenenar o cão do vizinho. Suponho que a morte se tenha tornado mais lenta e o veneno tenha extravasado dos cães de forma subtil…
            Nunca fui muito dado a misticismos mas, talvez por algum cansaço, acabei no canal New Page 3, onde se iniciava um documentário sobre experiências de pós-morte, realizado de acordo com os clichés habituais das imagens diluídas e da música dramática. Espapaçado como me sentia, assisti distraidamente a todas as narrativas de breves encontros com espíritos guardiães, túneis de luz, visualizações flutuantes de salas de operações, conversas com entes queridos e, inclusive, as ocasionais visões de santos e do próprio Jesus Cristo no seu reino rutilante a emanar mensagens falhas de originalidade. Recordei-me de um velho conhecido, um médico convictamente ateu, que tinha sido dado como morto durante alguns minutos em resultado de um anestesista de mão pesada numa operação relativamente simples e que, seguidamente, ressuscitara. Tinha-o sondado, com a curiosidade natural que uma coisa dessas desperta. “A escuridão. O vazio. O nada. Um vácuo total”, explicara-me, numa atitude sisuda e quase monossilábica. Algo não batia certo face à reportagem a que acabara de assistir. Algo muito pouco reconfortante porque, instintiva ou culturalmente, ou ambos, todos gostaríamos de gozar de algum tipo de eternidade confortável. A campainha soou com a pizza, trazendo-me instantaneamente de regresso ao mundo material. No exterior, escurecera e o entregador parecia sofrer com o vento cru da noite. Como, por vezes, se oferece uma mini a alguém que nos presta um serviço, agradeci-lhe com uma moeda de euro e despachei-o. Estava de volta ao meu esconderijo subterrâneo onde não queria que me incomodassem. Desliguei o televisor, sentei-me numa mesinha e comi metade da pizza por mera obrigação.
Nessa noite tinha algo a fazer. Antes de tudo, entretanto, cedi ao impulso de, uma vez mais, visitar o quarto que para sempre pertenceria a Ricardo, o quarto que continuaria a existir algures, mesmo muito depois de a casa ter sido demolida, várias outras construídas no local, nem que fosse um mero parque de estacionamento, um banco ou um supermercado, quando as pessoas pensassem cientificamente no nosso tempo como um tempo de homens-macacos. Naturalmente, nada tinha sido mexido e tudo estava no lugar. Nenhum ser etéreo descera de lado algum para me deixar uma mensagem mística. E nenhum ente das profundezas subira do seu algures para brincar aos Poltergeists. Sentei-me na borda da cama e fechei os olhos por instantes.
Estávamos numa esplanada, num dia ensombrado por ocasionais gotas de chuva fina que não se atrevia a cair inteira ou sequer continuadamente, eu e Ricardo adolescente. Queixava-se que a minha geração lhes – e esse lhes continha a eterna ilusão do novo e de como o novo sempre é melhor que o velho – tinha deixado um mundo desgraçado, sem oportunidades, que os jovens eram obrigados a emigrar à força, enfim, tínhamos dado cabo de tudo sem dó nem piedade.
- Bom, eu, em particular, não deixei mundo nenhum desses a ninguém. – retorquira.
- Sim, não estou a dizer que foste tu. Foi a tua geração.
- Então, penso que cabe à tua consertar as coisas, não achas?
- Eu não vou fazer nada.
- Não vais fazer nada? Isso torna-te ainda mais responsável do que qualquer geração anterior.
- Não disse que não ia trabalhar. – riu-se.
- Nesse caso, vais contribuir. Não tens que ser presidente da República.
Claro que o meu Ricardo, como todos os Ricardos de todos os tempos, se esquecia que todas as gerações padecem dos mesmos males e lançam as mesmas acusações. Lembrei-me de quando Frank Zappa garantiu que o poder iria passar para as mãos dos jovens. Grande Zappa! Tinha sido novo antes de morrer. Aquilo de que Ricardo também se esquecia era que a minha geração é que lhes tinha trazido os computadores, os jogos, a Internet, os telemóveis, os multicanais de TV, as músicas de todos os géneros, as modas exigentes e, sobretudo, a liberdade que tanto contrastava com o passado inteiro, nomeadamente a liberdade de expressão que lhe permitia acusar quem lhe apetecesse sem fazer nada no sentido de mudar as coisas e sem levar uma lambada aplaudida pela maioria da sociedade. Acho que a minha geração, sem querer, lhes tinha trazido tudo o que eles pretendiam ou poderiam talvez pretender e que nunca era suficiente, porque pairava sempre um ennui vago mais adiante. Tinha lido algures, num fórum estrageiro que frequentara, uma frase que resumia muita coisa: I am not young enough to know everything. Com um bocadinho de googling descobri que era uma citação de Oscar Wilde. Teria preferido que não tivesse sido uma citação, mas vive-se com o que há. De certa forma, era curioso e divertido. De certo modo era preocupante. Provavelmente, deveria ter-me preocupado mais. Mas também não sei bem o que poderia ter feito para tornar Ricardo adolescente, tão cheio de si, num Ricardo não adolescente. O meu nome de batismo não era Tempo.
Reabri os olhos, ergui-me e quedei-me, por momentos, a olhar para a cama onde Ricardo certamente tantas vezes sonhara, do mesmo modo como, ultimamente, eu me vira incapacitado de sonhar. Subitamente, senti-me vazio, mais vazio ainda do que me sentia normalmente. Num gesto instintivo, agarrei furiosamente a almofada branca de Ricardo e lancei-a contra a parede oposta, com toda a ira que me jorrava das mais ocultas entranhas. Logo de seguida, fui atingido por um sentimento de choque pelo que acabara de fazer. Como um autómato, dei dois, três passos largos, apanhei o pedaço de tecido frio e recoloquei-o cuidadosamente no seu lugar, na cama. Baixei-me e beijei a almofada como já antes fizera.
- Desculpa, meu filho. Dorme bem.

Nessa noite tinha algo a fazer. Já topara o indivíduo. Frequentava um pequeno café onde muitos jovens se reuniam ou por onde simplesmente passavam. Trazia o cabelo grisalho a tocar os ombros, um bigode descaído e vestia invariavelmente couro preto, ou talvez uma boa imitação de cabedal, que lhe roçava sapatilhas de marca. Parecia um tipo bem-disposto. No entanto, eu já o topara. Vesti a minha gabardina de bolsos fundos, cheios de tudo o que precisava, que não era muito, salvo uma ponta e mola que decidira efetivamente usar em caso de necessidade absoluta. Ninguém deve andar com uma navalha se não tiver a certeza de ser capaz de a usar. Até agora, não fora mesmo nada necessária, e ainda bem, porque, nesse caso, poderia deitar tudo a perder. Estacionei a dois quarteirões do café e fui fazer a minha ronda. Ele lá estava, numa mesa, rodeado de pessoas, talvez amigas, ou aliadas ou simplesmente conhecidas. O tempo arrastou-se até que chegou a hora do encerramento. Por essa altura, já dera algumas voltas pelas imediações, sem nunca me distrair, como o sniper que vigia pacientemente um alvo que, na sua inocência ou na sua estupidez, nada teme. Esperava que saísse sozinho, mas não tinha a certeza. Poderia estar a perder o meu tempo e simplesmente a candidatar-me a uma gripe na noite fria que me causava pele de galinha. Não, não era apenas a noite. Era, sobretudo, a perspetiva. Felizmente, o homem era um solitário, por mais que tivesse a mesa rodeada de gente. Não se demorou sequer a fumar um cigarro ou a conversar à entrada do café. Vi-o afastar-se da entrada da rua e segui-o instintivamente por uma rua paralela. Fui dar com ele mais adiante. Não morava longe e eu já lhe conhecia o prédio, um velho prédio com pequenos azulejos, talvez do início dos anos setenta. Com toda a calma que só as certezas permitem, no momento em que voltava a chave distraidamente, acerquei-me dele e perguntei as horas. A porta já estava entreaberta e, no preciso momento em que olhou para o relógio de pulso, cravei-lhe o tazer na nuca e vi-o estremecer e desfalecer diante de mim na rua vazia antes de o ter arrastado para o interior, para o vau por baixo da escadaria. Contive-me para não soltar uma gargalhada que alarmasse toda a vizinhança. Muito rapidamente, arregacei-lhe a manga esquerda e apertei-lhe fortemente um garrote acima do cotovelo. Certifiquei-me de que tinha as mãos protegidas pelas minhas luvas de latex. Sim, tudo corria perfeitamente. Retirei uma pequena seringa do bolso e cravei-lhe lentamente a agulha numa veia que lhe corria pela dobra do braço. Puxei o êmbolo lentamente e senti-me, uma vez mais, surpreendido pelo vermelho vivo que, como um rio calmo de vida, fluiu. Então, empurrei o êmbolo metodicamente e enchi-lhe a veia de ar. Tive pena de não haver mais ar na seringa, teria gostado de prolongar o momento. Senti um prazer indescritível, um prazer justiceiro, como se tivesse tomado o lugar de Deus porque Deus não existia e alguém tinha que o fazer. Vi-o tremer. Espumar. Sorri muito largamente.
Inesperadamente, ouvi uma porta abrir-se num andar de cima. O coração invadiu-me a boca. Mantive-me quieto, na minha toca momentânea, como um pequeno rato acossado.
- Não estou para aturar mais tretas destas! Vou dar uma volta e vê se pensas bem no que queres! – era uma voz de homem.
- Se sais, não precisas de voltar, ouviste? – era uma voz de mulher.
Ficaram a discutir à entrada da porta durante minutos que me pareceram horas. Naquele momento, não tinha a certeza daquilo para que estava preparado. Não ia matar um inocente. Também não me ia deixar apanhar. E o coração parecia querer saltar-me peito fora e subir as escadas para os esbofetear. Por fim, o tom de voz de ambos começou a serenar. Seguidamente, escutei o som da porta que se fechava. Alonguei os sentidos, já de si aguçados pelo perigo, e não escutei passos na escada. Tinham ido terminar a discussão, qualquer que ela fosse, certamente menos importante do que lhes parecera, em casa e, esperei, fazer as pazes com a bênção de quem quer que estivesse habilitado para dispensar bençãos. O coração tombou-me novamente no peito como um pedregulho. Tinha-me sentido momentaneamente tonto e agora, lentamente, ainda que com um sentimento de urgência, recuperava. Respirei fundo e, com a máxima cautela, em perfeito silêncio, pus-me a milhas, deixando para trás, quase esquecido por instantes, o cadáver obscuro do pusher. O mercado é largo e em breve ninguém mais se lembraria dele.



XIX

            Pela manhã, quando me preparava para sair, o telemóvel soou. Era o Lucas e o seu tom de voz denotava um misto de preocupação e espanto. Mesmo se, pensei para com os meus botões num instante muito breve, o que me contava seria de se esperar eventualmente…
            - Miguel?
            - Sim?
            - Sou o Lucas, pá, aconteceu uma coisa muito chata e achei que devia avisar os amigos.
            - Diz. Por acaso, estava quase a sair para o trabalho. Mas fala. Que é que foi?
            - O Luís, pá. Teve um ataque cardíaco e está internado no Hospital de S. Brás da Agonia.
            - O Luís? Bolas, e como é que foi isso?
            - Não sei exatamente, mas estás a par da vida que ele tem levado e, caramba, de repente deu-lhe. Está em coma. Isto é mesmo muito mau.
            - Sim. – concordei laconicamente, quase lhe contando que ainda há relativamente pouco tempo tinha estado com ele, mas contendo-me no último instante para poupar os detalhes que não quis contar.
            - Bom, já sabes. Se o quiseres visitar, sabes onde está. Dá-me uma telefonadela e vamos lá os dois.
            - E achas que vai recuperar? – perguntei.
            - Sei lá. Espero mesmo que sim. Pode ser uma lição de vida. Se recuperar, isto é. Não queria nada ter que assistir ao funeral dele. Ele é porreiro, sabes perfeitamente disso, fazia parte do nosso grupo e perdeu-se um bocado, pronto. Mas continua a ser o Luís e merece o nosso apoio. Ouve, liga-me assim que puderes e vamos lá juntos, ok?
            - Ok. Depois eu ligo. Abraço.
            - Abraço. Liga-me, sim?
            - Claro, já disse que sim. Abraço. – concordei, pleno de indiferença, e perguntei-me porquê. Na verdade, o Luís era uma vítima mais, tal como o meu filho tinha sido uma vítima e como, certamente, havia inúmeras vítimas diárias em diferentes graus, cheios de loucura, sida, hepatite, podridão cavalgante...Porquê a indiferença? Acho que não se explica sem uma boa dose de autoanálise. Porque sim.

            Quando era mais novo, tive um grande amigo com quem partilhava umas ganzas ocasionais, coisa de adolescentes. A certa altura, as coisas, para ele, começaram a ficar pesadas, cada vez mais pesadas. Começou a beber, a beber de tudo, coisas rasca. Experimentou ácidos. Speeds, recordo-me que na altura se usava muito o Lipoperdur ou algo assim. A partir de certa altura, meteu-se na heroína e injetava-se cada vez mais furiosamente. O culminar, apesar do vício da heroína que o ia apunhalando, foi, segundo me contaram, numa viagem de férias que fez com uns amigos que levavam ácidos. “Cuidado, é para meter só um”, tinha avisado um deles. De súbito, viram-no e estava a engolir uma tablete inteira. Acho que os amigos se riam e assustavam simultaneamente enquanto ele o fazia. De regresso, depois de todo um conjunto de reações estranhas, manias de perseguição e ataques de autodefesa delirante, foi internado e dado como esquizofrénico. “De qualquer modo, acabaria por acontecer”, pronunciou um médico. Se bem me recordo. Talvez, não sou médico e não sei. Levou com todo o tipo de neurolépticos e choques elétricos e acabou por sair, decorridas muitas semanas de espera. Procurou forçar-me a fazer-lhe um garrote para se chutar. Recusei-me e ficou furioso, desesperado, tresloucado. Andava como um robô e dizia coisas sem nexo. Ou, como certa vez fez, quando o encontrei na rua, deu-me um forte abraço interminável e disse: “Nunca te esqueças que somos amigos”. Talvez. Não sei, uma vez mais não sou médico, mas diz-se que os esquizofrénicos não têm verdadeira ressonância afetiva. Nunca mais fomos amigos, como os amigos que convivem e partilham coisas, nunca mais o vi e não sei o que foi feito dele. Aliás, apesar de o ter guardado no coração – ou melhor, a recordação de quem fora – sempre preferi não saber.
            Numa noite de verão, quando o verão ainda era verão e ainda éramos tão novos, vem-me a imagem exata dos meus amigos a chegar de carro ao café que já tinha fechado, seriam umas três da manhã?, talvez, não entendo como é que conseguiram conduzir o carro, vinham todos nitidamente a dormir ou como se dormissem, parecia-me que tinham os olhos fechados, aqueles olhos de pupilas muito pequeninas, estacionaram miraculosamente e vieram exibir-se como uma fotocópia daquela personagem do Tintin que enlouqueceu e queria matar os pais, acho que era os pais, e o próprio Tintin, com um sabre. Nessa altura, acho que não me consideravam exatamente amigo porque eu não estava no pó ou no cavalo, por outras palavras, não era fixe, mas o certo é que depois de muito esforço acabaram a não poder tocar numa pinga de álcool ou com os dentes a apodrecer e, depois, largamente postiços, isto para não mencionar os que nunca trabalharam e viveram toda a vida às custas da família até adoecerem de bagaço com cerveja, pneumonia ou tuberculose. Não sei exatamente o que foi feito deles.
            O meu amigo Cristiano, com quem costumava tocar guitarradas noutros tempos, que, certa vez, antes de um São João, me veio contar que ia levar morfina, é só uma piquita, disse, e depois acabou na maior decadência, a levar porrada no meio do passeio por ter roubado um blusão de couro para vender e essas coisas que se fazem, e não tenho a certeza se morreu, o mesmo que certa vez, não sei bem sob o efeito de quê, nos atirou com pedrinhas, a mim e a um colega que vinha comigo, ele vinha com outros e todos estavam muito estranhos, ouvi qualquer coisa, talvez tenha morrido, ou o tipo que assaltou uma farmácia e adormeceu lá dentro, onde a polícia o encontrou de manhã, um artista cheio de veia, perdido. Não sei. Não sei de nada. Sempre me afastei.
            O tipo que certa vez desmaiou, em pleno ar livre, enquanto mandava um chuto de heroína e o sangue ficou a escorrer-lhe da veia, alguém me contou na altura. Aqueles que, no final dos concertos cujo bilhete tinham comprado e a que não tinham assistido, que ficavam a dormir no meio dos vomitados e dos pedaços de vidro quebrado quando já todos estávamos a sair. Vi-os, tipos que mal conhecia e em quem não confiaria também, a preparar a heroína na colher, o limão, aquilo tudo e deixei de saber de tudo. Também ouvi dizer que o Carlos tinha morrido, não sei, nem faço ideia de quê, nem quero saber ou prefiro não querer saber. O André a aparecer absolutamente nervoso e excitado na cave onde passávamos as noites e a fumar uma chinesa, todo transpirado, estupidamente transpirado, a pingar no chão de cimento, finalmente aliviado. O meu amigo de liceu que encontrei numa paragem de autocarro, a coisa mais estúpida que fizera fora experimentar o cavalo, disse, meio desaustinado, tinha a cabeça em água, não se lembrava de mim nem de ninguém e estava uma pilha de nervos à espera do produto. Esqueci-me de tudo. Inclusive das namoradas que por lá passaram, raparigas absolutamente normais e cheias de sonhos, que se dedicaram à prostituição de rua para arranjar dinheiro. Talvez tenham morrido todas e não passem de cadáveres esquecidos. Ou não sei. Segui outro caminho e só fiquei com imagens entrecortadas…

            - Miguel! Miguel, está a ouvir alguma coisa do que eu tenho estado a dizer?
            - Perdão? João, peço desculpa, estava tão longe… Peço mesmo desculpa. Diga lá…
            - Estava a falar dos planos para os terrenos do Bairro do Laranjal. Temos estado a trabalhar nisso e precisávamos que desse uma opinião sobre as ideias que temos criado, são várias.
            - O Bairro do Laranjal? – acordei dos meus pensamentos e recordações e aterrei no atelier com uma força plena de violência de que ninguém se apercebeu – Sim, claro, temos que ver isso. Para quando é que a Câmara está a planear exatamente a implosão?
            - Para o final de setembro. Foi o Miguel que nos transmitiu essa informação. Não se recorda?
            - Sim, claro. Vamos lá ver em que é que temos andado a pensar.
            Todos olharam para mim com alguma estranheza que rapidamente se esvaiu e procedi a examinar os projetos, as ideias, estavam interessantes, enfim, basicamente interessantes. Do meio da minha galáxia, ergui a mente, examinei, estudei, pensei e acrescentei algumas ideias.
            - Na maioria, têm aí ideias muito válidas. Façam apenas mudanças nisto e naquilo, assim e assim, pode ser?
            - Claro. Vamos já tratar disso. Muito obrigado pela ajuda.
            - De nada. É para isso que aqui estou.
            Não tinha exatamente a certeza de onde estava. Sempre tive um certo dom da ubiquidade, ainda que não absolutamente perfeito. Nunca fui Santo António nem me chamaram São Miguel.

            Quando já estava com um pé fora da porta, o João de novo:
            - Miguel?
            Voltei-me para trás, convencido de que alguma informação me teria escapado, pronto a ajudar:
            - Sei que não tem nada a ver, mas viu o noticiário de hoje?
            - O noticiário? Não, porquê?
            - Sabe, aquelas mortes que tem havido na cidade, relacionadas com o tráfico de droga, a polícia já descobriu o culpado.
            Arrepiei-me instintivamente.
            - Não é o culpado, peço desculpa, é os culpados. Aliás, coincidiu com mais um assassínio do género ontem à noite. Em todo o caso, talvez agora se possa andar mais descansado…
            Desarrepiei-me.
            - Mais um? Realmente… Mas, afinal, descobriram os culpados?
            - Sim, parece que tudo teve a ver com problemas entre gangues, aliás era o que se afigurava desde o início. Já prenderam um grupo de tipos. Parece que deixaram rasto daquela vez em que violentaram um desgraçado completamente antes de o matar ou, pior, depois de já estar morto, daquela vez em que se devem ter passado de todo. Não deu para lhes ver a cara, passaram as imagens de quando os encaminhavam para interrogatório, mas todos tapavam a cara. Uma coisa complicada. Mas é como digo, suponho que agora, finalmente, tudo isto possa parar. A cidade não tem sido o que já foi, está mais perigosa. A minha mulher diz-me que não se atreve a sair à noite sozinha.
            - Hmm, ainda bem. Essas coisas não podem passar em branco, senão não sei onde vamos parar. Ainda bem que a polícia faz o seu trabalho. Bom, tenho que ir. Qualquer coisa, liguem-me, combinado? Já sabem.
            - Até logo.
            - Bom trabalho. Até logo.
            Saí. Não sabia se me deveria rir, se chorar, se recear. No fundo, a incompetência e as ideias preconcebidas, pelo menos assim à partida, calhavam-me na perfeição. Mais que não fosse, de momento.

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