XXIV
Cheguei
a casa, desliguei o computador e o televisor da tomada, o que nunca fazia, e
fui-me deitar. Adormeci suavemente como o primeiro floco de neve de um inverno morno.
Acordei, seriam umas três da manhã, com o coração a saltar-me do peito e alagado em suor. A estranha velha que
certa vez se me dirigira na rua, tentava alcançar-me com os braços esfarrapados
e gargalhava perdidamente com a sua boca desdentada onde sobravam alguns dentes
ratados que soltavam um horrível odor a matéria podre. A pele
encarquilhava-se-lhe como uma folha velha que atiramos para o cesto dos papéis
num momento de mau humor. Estávamos num beco sem saída para qualquer dos lados,
um espaço fechado sobre o qual pairava uma imensa lua cheia em tons sombrios e
eu tentava, com dificuldade, escapar às suas arremetidas. Ouvi um gato miar
nervosamente no pleno do seu cio e desviei o olhar momentaneamente para o
procurar. Quando olhei de novo para a velha, encontrei-a estendida, em posição
fetal, numa poça de sangue a que a lua emprestava reflexos. Lentamente,
operou-se uma transformação e o cadáver rejuvenesceu diante do meu olhar
atónito que a viu transmutar-se numa rapariga nova, atraente e bem vestida. Paulatinamente,
o sangue tornou-se água clara. A própria lua soltou uma gargalhada enlouquecida
sobre nós e despertei.
Tropecei até ao quarto de banho e,
inspirando fundo, passei o rosto por água fria que contrastava fortemente com o
estio exagerado que cobria a cidade como há muitos anos não me recordava.
Pausei um pouco, debruçado sobre o lavatório e regressei à cama. Uma vez mais,
adormeci.
Regressei ao mundo dos sonhos.
Conversava com Ricardo, o meu Ricardo, já com dezassete anos.
- Então, como têm corrido as coisas
nas aulas?
- Tudo bem.
- Tens namorada ou quê?
- Não me quero comprometer.
- Bom, ter uma namorada não é
exatamente igual a um comprometimento para a vida…
- Sim, mas acho que me poderia
distrair do essencial. Neste momento, estou mais preocupado em lutar por uma
carreira. Quero ser alguém.
- Ah, bom.
- Pai, não me podias dar algum
dinheiro para um concerto hoje à noite? Os meus amigos vão todos.
- De quanto é que precisas?
- Vinte euros devem chegar.
Fui à carteira e passei-lhe vinte
euros.
- Espero que te divirtas. Depois,
conta-me como foi.
- É só música. Não é como no teu
tempo, quando os pavilhões acabavam cobertos de garrafas partidas aos
bocadinhos e tipos que tinham pago o concerto, adormecidos pelos cantos.
Não estranhei o facto de me estar a
falar de algo que eu mesmo nunca lhe tinha contado. Deu-me um quente abraço e
um beijo e disse:
- Vou-me deitar.
- Já vais?
- Sim. Amanhã de manhã tenho aulas
logo ao primeiro tempo.
Sorri satisfeito, apesar de, de
algum modo, saber que o dia seguinte era domingo e que a conversa não tinha
sentido. Ricardo subiu para o seu quarto. Escutei-lhe os passos calmos. Não
podia querer melhor filho! Deixei-me ficar por instantes, estirado no sofá,
enquanto o televisor passava desenhos animados. Subitamente, apercebi-me de que
Ricardo esquecera o pijama nas costas da cadeira e decidi subir para lho
entregar.
Bati à porta e ninguém respondeu. Já
terá adormecido?, pensei, ponderando se, nesse caso, o deveria acordar. Decidi
bater de novo. Silêncio total. Aguardei. Bati uma vez mais. Nada. Abri a porta
com cuidado e deparei com a cena que sempre me perseguira: Ricardo estendido na
cama, os olhos revirados, o fio de sangue e espuma entre os lábios, meio limão,
uma colher oxidada, uma prata e a seringa que lhe pendia do braço, balouçante.
- Ricardo! – exclamei num desespero que
me saltou das entranhas.
O meu filho ergueu-se, sentou-se na
borda da cama e, sorrindo, disse:
- Pai, eu adoro-te. Desculpa, só
queria saber como era…
Subitamente uma revoada densa de
pombas brancas entrou pela janela aberta onde nem mais nem menos do que
Hitchcock me fitava com um charuto distraído entre os dedos e acordei. Já era
de manhã e, pela primeira vez no prazo de um ano, passara a noite a sonhar.
Envolto em pesadelos. Não é que os pesadelos correspondam ao que chamamos
realidade, mas conseguem ser consideravelmente mais intensos. Fazia
precisamente um ano desde o dia em que o meu filho, Ricardo, não a sua
recordação, e as recordações podem doer como ferros de marcar gado, me
abandonara quase certamente para a eternidade. Algum tipo de angústia
inqualificável apoderou-se de mim como uma tenaz e um arrepio percorreu-me a
coluna. Por momentos, fiquei totalmente paralisado, as pálpebras cerradas ao ponto
de doerem. Depois, chegado de algum ponto recôndito do meu cérebro, em
crescendo, por fim em diminuendo, senti o tema de que há tempos não me
lembrava: “Just because you feel it, it doesn’t mean it’s there (…) We are all accidents waiting to happen”… Just because you feel it, it doesn’t mean
it’s there". Reabri os olhos. Magicamente, como chegara,
partira. E a angústia desvanecera-se como a espuma marítima na areia, deixando
atrás de si apenas algum sal: o do mar como o dos meus olhos. Vós sois o sal da
terra…
Verifiquei as horas… Passava do
meio-dia. Dormira muito, como por uma vida inteira que se desenrolasse diante de
mim. Sentia-me, agora, estranhamente relaxado, como que caminhando sobre
nuvens. Deixei de lado o duche matinal e a barba e vesti umas calças de ganga
velhas, uma t-shirt larga e negra sem marca e um par de sapatilhas gastas.
Aprontei-me. Lá fora, o sol ardia. Dentro de casa, no entanto, com as persianas
semicerradas, não era sequer possível pressenti-lo exatamente. Dirigi-me à cozinha
e bebi, do cartão, o que restava de leite gelado. Senti-me como se merecesse
uma refeição muito completa, preparada por um chef renomado, finalizada por um rico charuto cubano, mas achei que
não valia a pena. Para mais, nunca apreciara charutos. Saí por instantes e
reentrei. De seguida, subi as escadas, dirigi-me ao quarto de Ricardo e fechei
a porta atrás de mim.
Tudo no quarto se desvanecera.
Fiquei, sim, por largos instantes, fixo na cama vazia. Aproximei-me, coloquei
sobre a almofada branca uma rosa vermelha que acabara de recolher no nosso
quintal, senti o cheiro misturado que emanava da flor e da almofada e, ainda
que não totalmente convicto, ajoelhei-me e rezei um Pai Nosso, a única oração
completa que ainda me sobrava na memória da infância longínqua. Então, ainda
que duvidoso de que alguém me escutasse, falei com Deus e, sobretudo, com
Ricardo, em pensamento. Com os olhos húmidos, beijei profundamente aquele
pedaço de tecido feito para encostar a cabeça quando se dorme, a coisa mais
próxima do meu filho que, naquele momento, senti, voltei costas e parti.
Estacionei junto ao bairro do
Laranjal e desci o caminho de terra, contendo a pressa, olhado pelo canto do
olhar pelos habitantes que me viam e esforçando-me por os ignorar. Com sorte,
nenhum se lembraria de me dirigir a palavra. Cheguei junto à torre da Fininha e
juntei-me à fila que se formava, naquele momento, a partir de metade da
escadaria e aguardei, ascendendo lentamente, mais sereno do que se me
enrodilhasse numa fila nas Finanças, indiferente ao cheiro a podridão e
decadência que emanava descaradamente da construção e daqueles seres amontoados
de dentes podres e corpos por lavar, de olhar vidrado. Sentia um burburinho na
atmosfera, mas parecia-me que irradiava de uma estranha dimensão que me era
alheia.
A subida foi longa mas, não tardou,
estava junto à porta encostada, de cujo interior me chegavam ruídos e vozes indescortináveis.
O indivíduo que se encontrava à minha frente desapareceu apressadamente escada
abaixo e, apenas por um momento, senti um arrepio instantâneo percorrer-me de
alto a baixo. Durante esse momento, tão exato, senti que poderia ficar ou
partir…
Bati à porta e surgiu-me
precisamente o gorila com quem me deparara na minha primeira visita.
- Ó amigo, o que é que………
Antes que pudesse terminar a frase,
cravei-lhe uma faca de cozinha perto do umbigo, a mais afiada que encontrara nas
gavetas, enterrei-lha até ao fundo dos intestinos e rodei-a energicamente,
enquanto sentia o sangue quente e viscoso escorrer-me das mãos para os braços e
para o chão de cimento carcomido.
- Não sou teu amigo, porco! –
rosnei-lhe ao ouvido.
A confusão instalou-se e os clientes
pisotearam-se escada abaixo. Acho que alguém se deve ter desequilibrado na
berma fina e dado o maior trambolhão da sua vida encurtada. Um grupo de
indivíduos musculados, uns grandes, outros pequenos, irromperam do interior, de
armas apontadas para mim. Enquanto me atingiam quase à queima-roupa, eu sorria
de prazer e de dor, fazendo rebentar a carga de explosivos que trazia colada ao
peito e à barriga, que secretamente vinha preparando há tempos na minha
garagem, uma pequena rodilha como uma pequena bomba nuclear que transformou os
corpos culpados e inocentes de todos em pequenas partículas indecifráveis entre
a poeira cinzenta estilhaçada do edifício que alagou o bairro e que, com
estrondo, deve ter alarmado toda a cidade. A mim, que há tanto tinha já
morrido, tanto me fazia, excetuando-se a satisfação de nunca ter deixado um
projeto a meio. Não sei de mais…
XXV
Flutuo… Ou flutuo teoricamente
naquele lado de onde nunca ninguém me chegou para contar o que por lá se passa.
Tratei antecipadamente de deixar, em
testamento, o meu gabinete aos meus funcionários, colegas e amigos que, estou
certo, o saberão levar mais longe do que eu o poderia fazer. O resto, casa,
contas pessoais, uma pequena propriedade que tinha nas encostas do Douro,
deixei a Joana. Deixei ainda a minha memória a todos e cada um poderá julgá-la
como melhor entender. Será, com toda a certeza, mais importante para os outros
do que para mim. E, em todo o caso, um julgamento passageiro, porque tudo é
passageiro. Se é que isso me pode interessar minimamente…
Não vejo Deus, nem o diabo, nem
Ricardo, e como gostaria de o ver!, nem os meus pais, nem ninguém que tenha
partido, nem nenhum túnel de luz, nem espíritos guias que me indiquem o
caminho. Flutuo simplesmente. E sinto uma paz e uma ausência de culpa e
obrigação como nunca senti nem soube poder sentir.
Solucionei alguma coisa? Trouxe Ricardo
de volta à vida? Trouxe-me a mim ou a alguém de volta à vida? Impedi que o
mundo continuasse a rolar baseado em dinheiro e em agendas como sempre
funcionou? Negativo. A resposta é basicamente negativa. De alguma forma, no
entanto, vinguei o meu filho e outros filhos e todos os desgraçados que matei
na torre do Laranjal e não vacilei nas minhas decisões. Ou é-me, pelo menos,
agradável sentir que assim foi.
Flutuo concluído, dou lugar a outros
e é tudo…
Jorge Simões, 2014