28.1.19

Ricardo - capítulos XXIV e XXV


XXIV

            Cheguei a casa, desliguei o computador e o televisor da tomada, o que nunca fazia, e fui-me deitar. Adormeci suavemente como o primeiro floco de neve de um inverno morno.
            Acordei, seriam umas três da manhã, com o coração a saltar-me do peito e alagado em suor. A estranha velha que certa vez se me dirigira na rua, tentava alcançar-me com os braços esfarrapados e gargalhava perdidamente com a sua boca desdentada onde sobravam alguns dentes ratados que soltavam um horrível odor a matéria podre. A pele encarquilhava-se-lhe como uma folha velha que atiramos para o cesto dos papéis num momento de mau humor. Estávamos num beco sem saída para qualquer dos lados, um espaço fechado sobre o qual pairava uma imensa lua cheia em tons sombrios e eu tentava, com dificuldade, escapar às suas arremetidas. Ouvi um gato miar nervosamente no pleno do seu cio e desviei o olhar momentaneamente para o procurar. Quando olhei de novo para a velha, encontrei-a estendida, em posição fetal, numa poça de sangue a que a lua emprestava reflexos. Lentamente, operou-se uma transformação e o cadáver rejuvenesceu diante do meu olhar atónito que a viu transmutar-se numa rapariga nova, atraente e bem vestida. Paulatinamente, o sangue tornou-se água clara. A própria lua soltou uma gargalhada enlouquecida sobre nós e despertei.
            Tropecei até ao quarto de banho e, inspirando fundo, passei o rosto por água fria que contrastava fortemente com o estio exagerado que cobria a cidade como há muitos anos não me recordava. Pausei um pouco, debruçado sobre o lavatório e regressei à cama. Uma vez mais, adormeci.
            Regressei ao mundo dos sonhos. Conversava com Ricardo, o meu Ricardo, já com dezassete anos.
            - Então, como têm corrido as coisas nas aulas?
            - Tudo bem.
            - Tens namorada ou quê?
            - Não me quero comprometer.
            - Bom, ter uma namorada não é exatamente igual a um comprometimento para a vida…
            - Sim, mas acho que me poderia distrair do essencial. Neste momento, estou mais preocupado em lutar por uma carreira. Quero ser alguém.
            - Ah, bom.
            - Pai, não me podias dar algum dinheiro para um concerto hoje à noite? Os meus amigos vão todos.
            - De quanto é que precisas?
            - Vinte euros devem chegar.
            Fui à carteira e passei-lhe vinte euros.
            - Espero que te divirtas. Depois, conta-me como foi.
            - É só música. Não é como no teu tempo, quando os pavilhões acabavam cobertos de garrafas partidas aos bocadinhos e tipos que tinham pago o concerto, adormecidos pelos cantos.
            Não estranhei o facto de me estar a falar de algo que eu mesmo nunca lhe tinha contado. Deu-me um quente abraço e um beijo e disse:
            - Vou-me deitar.
            - Já vais?
            - Sim. Amanhã de manhã tenho aulas logo ao primeiro tempo.
            Sorri satisfeito, apesar de, de algum modo, saber que o dia seguinte era domingo e que a conversa não tinha sentido. Ricardo subiu para o seu quarto. Escutei-lhe os passos calmos. Não podia querer melhor filho! Deixei-me ficar por instantes, estirado no sofá, enquanto o televisor passava desenhos animados. Subitamente, apercebi-me de que Ricardo esquecera o pijama nas costas da cadeira e decidi subir para lho entregar.
            Bati à porta e ninguém respondeu. Já terá adormecido?, pensei, ponderando se, nesse caso, o deveria acordar. Decidi bater de novo. Silêncio total. Aguardei. Bati uma vez mais. Nada. Abri a porta com cuidado e deparei com a cena que sempre me perseguira: Ricardo estendido na cama, os olhos revirados, o fio de sangue e espuma entre os lábios, meio limão, uma colher oxidada, uma prata e a seringa que lhe pendia do braço, balouçante.
            - Ricardo! – exclamei num desespero que me saltou das entranhas.
            O meu filho ergueu-se, sentou-se na borda da cama e, sorrindo, disse:
            - Pai, eu adoro-te. Desculpa, só queria saber como era…
            Subitamente uma revoada densa de pombas brancas entrou pela janela aberta onde nem mais nem menos do que Hitchcock me fitava com um charuto distraído entre os dedos e acordei. Já era de manhã e, pela primeira vez no prazo de um ano, passara a noite a sonhar. Envolto em pesadelos. Não é que os pesadelos correspondam ao que chamamos realidade, mas conseguem ser consideravelmente mais intensos. Fazia precisamente um ano desde o dia em que o meu filho, Ricardo, não a sua recordação, e as recordações podem doer como ferros de marcar gado, me abandonara quase certamente para a eternidade. Algum tipo de angústia inqualificável apoderou-se de mim como uma tenaz e um arrepio percorreu-me a coluna. Por momentos, fiquei totalmente paralisado, as pálpebras cerradas ao ponto de doerem. Depois, chegado de algum ponto recôndito do meu cérebro, em crescendo, por fim em diminuendo, senti o tema de que há tempos não me lembrava: “Just because you feel it, it doesn’t mean it’s there (…) We are all accidents waiting to happen”… Just because you feel it, it doesn’t mean it’s there". Reabri os olhos. Magicamente, como chegara, partira. E a angústia desvanecera-se como a espuma marítima na areia, deixando atrás de si apenas algum sal: o do mar como o dos meus olhos. Vós sois o sal da terra…

            Verifiquei as horas… Passava do meio-dia. Dormira muito, como por uma vida inteira que se desenrolasse diante de mim. Sentia-me, agora, estranhamente relaxado, como que caminhando sobre nuvens. Deixei de lado o duche matinal e a barba e vesti umas calças de ganga velhas, uma t-shirt larga e negra sem marca e um par de sapatilhas gastas. Aprontei-me. Lá fora, o sol ardia. Dentro de casa, no entanto, com as persianas semicerradas, não era sequer possível pressenti-lo exatamente. Dirigi-me à cozinha e bebi, do cartão, o que restava de leite gelado. Senti-me como se merecesse uma refeição muito completa, preparada por um chef renomado, finalizada por um rico charuto cubano, mas achei que não valia a pena. Para mais, nunca apreciara charutos. Saí por instantes e reentrei. De seguida, subi as escadas, dirigi-me ao quarto de Ricardo e fechei a porta atrás de mim.
            Tudo no quarto se desvanecera. Fiquei, sim, por largos instantes, fixo na cama vazia. Aproximei-me, coloquei sobre a almofada branca uma rosa vermelha que acabara de recolher no nosso quintal, senti o cheiro misturado que emanava da flor e da almofada e, ainda que não totalmente convicto, ajoelhei-me e rezei um Pai Nosso, a única oração completa que ainda me sobrava na memória da infância longínqua. Então, ainda que duvidoso de que alguém me escutasse, falei com Deus e, sobretudo, com Ricardo, em pensamento. Com os olhos húmidos, beijei profundamente aquele pedaço de tecido feito para encostar a cabeça quando se dorme, a coisa mais próxima do meu filho que, naquele momento, senti, voltei costas e parti.

            Estacionei junto ao bairro do Laranjal e desci o caminho de terra, contendo a pressa, olhado pelo canto do olhar pelos habitantes que me viam e esforçando-me por os ignorar. Com sorte, nenhum se lembraria de me dirigir a palavra. Cheguei junto à torre da Fininha e juntei-me à fila que se formava, naquele momento, a partir de metade da escadaria e aguardei, ascendendo lentamente, mais sereno do que se me enrodilhasse numa fila nas Finanças, indiferente ao cheiro a podridão e decadência que emanava descaradamente da construção e daqueles seres amontoados de dentes podres e corpos por lavar, de olhar vidrado. Sentia um burburinho na atmosfera, mas parecia-me que irradiava de uma estranha dimensão que me era alheia.
            A subida foi longa mas, não tardou, estava junto à porta encostada, de cujo interior me chegavam ruídos e vozes indescortináveis. O indivíduo que se encontrava à minha frente desapareceu apressadamente escada abaixo e, apenas por um momento, senti um arrepio instantâneo percorrer-me de alto a baixo. Durante esse momento, tão exato, senti que poderia ficar ou partir…
            Bati à porta e surgiu-me precisamente o gorila com quem me deparara na minha primeira visita.
            - Ó amigo, o que é que………
            Antes que pudesse terminar a frase, cravei-lhe uma faca de cozinha perto do umbigo, a mais afiada que encontrara nas gavetas, enterrei-lha até ao fundo dos intestinos e rodei-a energicamente, enquanto sentia o sangue quente e viscoso escorrer-me das mãos para os braços e para o chão de cimento carcomido.
            - Não sou teu amigo, porco! – rosnei-lhe ao ouvido.
            A confusão instalou-se e os clientes pisotearam-se escada abaixo. Acho que alguém se deve ter desequilibrado na berma fina e dado o maior trambolhão da sua vida encurtada. Um grupo de indivíduos musculados, uns grandes, outros pequenos, irromperam do interior, de armas apontadas para mim. Enquanto me atingiam quase à queima-roupa, eu sorria de prazer e de dor, fazendo rebentar a carga de explosivos que trazia colada ao peito e à barriga, que secretamente vinha preparando há tempos na minha garagem, uma pequena rodilha como uma pequena bomba nuclear que transformou os corpos culpados e inocentes de todos em pequenas partículas indecifráveis entre a poeira cinzenta estilhaçada do edifício que alagou o bairro e que, com estrondo, deve ter alarmado toda a cidade. A mim, que há tanto tinha já morrido, tanto me fazia, excetuando-se a satisfação de nunca ter deixado um projeto a meio. Não sei de mais…














                                                                  XXV

            Flutuo… Ou flutuo teoricamente naquele lado de onde nunca ninguém me chegou para contar o que por lá se passa.

            Tratei antecipadamente de deixar, em testamento, o meu gabinete aos meus funcionários, colegas e amigos que, estou certo, o saberão levar mais longe do que eu o poderia fazer. O resto, casa, contas pessoais, uma pequena propriedade que tinha nas encostas do Douro, deixei a Joana. Deixei ainda a minha memória a todos e cada um poderá julgá-la como melhor entender. Será, com toda a certeza, mais importante para os outros do que para mim. E, em todo o caso, um julgamento passageiro, porque tudo é passageiro. Se é que isso me pode interessar minimamente…

            Não vejo Deus, nem o diabo, nem Ricardo, e como gostaria de o ver!, nem os meus pais, nem ninguém que tenha partido, nem nenhum túnel de luz, nem espíritos guias que me indiquem o caminho. Flutuo simplesmente. E sinto uma paz e uma ausência de culpa e obrigação como nunca senti nem soube poder sentir.

            Solucionei alguma coisa? Trouxe Ricardo de volta à vida? Trouxe-me a mim ou a alguém de volta à vida? Impedi que o mundo continuasse a rolar baseado em dinheiro e em agendas como sempre funcionou? Negativo. A resposta é basicamente negativa. De alguma forma, no entanto, vinguei o meu filho e outros filhos e todos os desgraçados que matei na torre do Laranjal e não vacilei nas minhas decisões. Ou é-me, pelo menos, agradável sentir que assim foi.

            Flutuo concluído, dou lugar a outros e é tudo…


Jorge Simões, 2014

14.1.19

Ricardo - capítulos XXII e XXIII


XXII

            Passei diretamente da igrejazinha para o meu atelier. Levava comigo um desejo de me confessar a toda a gente, mas tive a certeza que ninguém iria compreender. Ainda para mais, pensei, tinha que manter a minha pose socialmente correta. Bom, não tinha importância, ao menos não era obrigado a andar de fato e gravata como um vendedor de alguma multinacional.
            Quando me viu chegar, João ergueu-se ligeiramente da sua secretária e dirigiu-se-me com a novidade:
            - Bom dia, Miguel. O projeto do bairro do Laranjal saiu hoje em Diário da República. Foi-nos adjudicado.
            - Posso ver?
            Com meia dúzia de cliques no teclado, João mostrou-me a página do Diário da República eletrónico. Lá estávamos.
            - Ok.
            - Boas notícias, certo? – interveio Marília.
            - Mau seria… - respondi e deixei-me cair pesadamente, satisfeito, na minha cadeira. De seguida, prossegui… - Todos percebem a sorte que temos quando a arquitetura está pela hora da morte e, não sei exatamente, diria que uns cinquenta por cento dos arquitetos na Europa do sul estão, atualmente, sem nada para fazer. A sorte que temos, hã?
            Um rumor de assentimento percorreu a sala.
            - Mais alguma coisa nova? – indaguei, procurando mostrar-me interessado.
            - Recebemos um e-mail com uma proposta para remodelações gerais nas instalações de um banco. Se quiser ver…
            - Hmm, sim – fui ao meu e-mail e dei uma vista de olhos.
            - Contactamo-los já? – perguntou João.
            - Não, deixe passar um ou dois dias. Senão, dá a impressão de que estamos desesperados. Por acaso, até nem estamos.
            - Está bem. – aquiesceu. – Desde que paguem…
            - Ai, sim, de certeza que pagam! – ri. – Vamos deixar passar três dias. Eu mesmo me ocupo disso.
            Estirei-me, acendi uma das minha cigarrilhas e comecei a lançar arcos de fumo em direção ao teto enquanto recordava o resto daquele dia incomum. Não tardou, chegaram tossidelas da secretária de Andreia. Continuei. Aquilo entretinha-me. Novas tossidelas. Por fim, não se conteve:
            - Miguel, por favor, já lhe expliquei que o fumo me incomoda.
            - Pois foi. – respondi, a cigarrilha pendendo-me dos lábios.
            - Já pensou, pelo menos, em usar cigarros eletrónicos?
            - Um destes dias, passou uma reportagem na TV. Parece que ainda fazem pior do que os normais. – interveio Marília.
            - Ai, sim? – respondi, meio distraído. – Então, não devem valer a pena.
            Enviei mais uma densa nuvem cinzento-azulada em direção ao teto, ao mesmo tempo que semicerrava os olhos com uma certa espécie de prazer que ainda conseguia sentir. E depois, outra. Andreia voltou à carga:
            - Miguel, não nos está a respeitar… - proferiu, de modo quase hesitante.
            - Não? – perguntei, soerguendo-me na cadeira, e fingindo surpresa.
            Ela inspirou fundo e insistiu, queixando-se:
            - Não. Não consigo concentrar-me num ambiente de fumo.
            - Ah! – exclamei suavemente.
            João e Marília estavam, ou mostravam estar, distantes da cena.
            - Então, o que propõe? A verdade é que, na maior parte do tempo, nem sequer por cá estou. O meu passatempo ocasional incomoda-a a esse ponto?
            - Por acaso… sim. – respondeu Andreia, enchendo-se de coragem.
            Ponderei um pouco, lançando simultaneamente mais um par de arcos de fumo na atmosfera. Ergui-me, dirigi-me à porta de saída, esmaguei o que restava da cigarrilha no passeio e voltei a entrar. Cheguei-me junto de Andreia e disse, inventando um olhar distante:
            - Pois…
            A rapariga devia estar nervosa, consegui senti-lo e era, aliás, natural que assim fosse. Ficou à espera que eu dissesse algo. Provavelmente, que me desculpasse, nunca se sabe o que vai na cabeça dos outros…
            - Então… - disse eu, momentos decorridos -…, parece que os seus serviços não nos serão mais necessários. Desejo-lhe um bom futuro na arquitetura e prometo que não transmitirei referências negativas acerca de si a ninguém.
            Pude ler o choque vidrado no olhar dela. Aquela espécie de choque em que não sabemos se estamos acordados ou a sonhar ou se o nosso interlocutor está a falar a sério ou a dizer uma piada de gosto duvidoso. Acabou por compreender que eu, apesar de lhe sorrir e estender a mão naquele momento, queria mesmo dizer cada uma das minhas palavras. Os lábios descaíram-lhe um pouco e quase receei que lhe surgisse alguma lágrima inútil nos olhos ou, muito mais provavelmente, que procurasse negociar a situação. Em lugar disso, e aí tenho que lhe reconhecer fibra, estendeu-me a mão, confessou que tinha pena que assim tivesse que ser, arrumou as suas coisas e despediu-se dos colegas, não de mim, os quais, suponho, estariam quase tão surpreendidos como ela.
            - Acabámos de perder um bom elemento… - disse-me João, quando a porta já se fechara atrás dela.
            Voltei-me para o encarar. Claramente, a situação desagradava-lhe, mas também não lhe dizia respeito diretamente.
            - Talvez… - respondi pensativamente – Com certeza que vai encontrar um lugar onde tenha menos razões de queixa. Vamos lá ver, este é o meu atelier, é um pouco como a minha casa, era o que faltava que não pudesse fumar uma desgraçada duma cigarrilha na minha própria casa. Além do mais, uma estagiária a pretender fazer-me frente não é coisa boa. Não, não é.
            - Estou a ver. – acedeu ou fingiu aceder João.
            - Sim. Se queremos trabalhar em equipa, não podemos estar divididos.
            Não sei exatamente o que João e Marília terão pensado da minha atitude e das minhas palavras porque optaram por não se pronunciar e uma opção é uma opção. Também não perguntei, porque não vale a pena estar a malhar em ferro frio. Talvez tenham pensado que eu era um danado de um fascista. Por outro lado, já trabalhavam comigo há tempo suficiente para saber que assim não era. Para dizer a verdade, pouco me importou o que tenham pensado. A paz não tinha chegado a ser alterada e o gabinete mantinha-se em funcionamento pleno.
            - Marília… - pedi.
            - Diga, Miguel.
            - Importar-se-ia de divulgar nos melhores locais que estamos à procura de um estagiário ou estagiária? De certeza que hão de faltar candidatos. Ah, e por favor, mostre-me o texto antes de o divulgar, pode ser?
            - Com certeza.
            - Obrigado. – sorri.
            Talvez Andreia tenha andado a chamar-me filho dileto de Lúcifer um pouco pelos quatro cantos do planeta, mas eu tinha passado aquela fronteira tão comum, aquém da qual ainda nos importamos. Com toda a franqueza, não fazia ideia porque me havia sequer de importar…























XXIII

O verão tinha, enfim, explodido e suponho que as pessoas, regra geral, parecessem e se sentissem efetivamente mais animadas. Eu mesmo sempre tivera o hábito de gastar parte dos meus pensamentos invernais, agora que mal se dava pelo outono ou pela primavera, num desejo ardente do regresso da silly season. Agora, não me trazia mais do que más recordações. A pequena avenida ladeada de pequenas moradias que, naquela manhã, me conduzia à praia do costume, estava repleta de árvores verdejantes e flores dardejantes sob o céu perfeitamente azul e inesgotável. Ao volante do meu automóvel, no entanto, não dava por nada. Talvez tivesse ganho laivos graves de daltonismo…
Sentei-me na minha esplanada do costume, não na minha mesa do costume porque já estava ocupada, e pedi um fino apenas pela obrigação de pedir algo. O próprio mar em frente refulgia e eu estava absolutamente incapaz de o perceber, salvo nas minhas memórias que, ainda assim, procurava evitar porque, na verdade, doíam muito mais do que um possível e passageiro escaldão. O fino chegou e sorvi-lhe a espuma, uma espuma demasiadamente amarga como era excessivamente salgada a espuma que vinha rebentar junto às pequenas rochas do areal. Peguei numa cigarrilha e a visão da cigarrilha enjoou-me. Deixei-a a repousar sobre o tampo da mesa. Percebi que a confusão de trânsito, banhistas e gente na esplanada com o seu ruído próprio, somado à confusão dos altifalantes que debitavam música pop sem dó nem piedade, me estavam a causar pele de galinha. Seria aquela a minha praia? Recostei-me contra as costas duras da cadeira e cerrei os olhos.
Vi-me na China, ainda Cristo não descera teoricamente à Terra, entre montanhas e vastos arrozais. De algum modo, dialogava em chinês, próximo a uma fogueira, com um grupo de camponeses como eu. Distraidamente, lancei bambu verde para o fogo. O bambu escureceu, enegreceu e, de modo absolutamente inesperado, estourou num intenso clarão que nos deixou perplexos e amedrontados. Os animais das redondezas corriam em todas as direções, não menos assustados. Ficámos em silêncio durante largos instantes e, seguidamente, esse silêncio transformou-se numa cegarrega de comentários e teorias, entaramelados e incompreensíveis. No fundo, estávamos tão aliviados por termos sobrevivido a uma qualquer catástrofe como chocados e espantados. Alguém aventou a ideia de que o que acabara de ocorrer poderia constituir uma excelente forma de espantar os espíritos maléficos que sempre nos atacavam as colheitas. Em breve, a notícia espalhara-se e eis que me encontrava na Cidade Proibida, em plena celebração do Ano Novo Lunar. O Pau Chuk, ou bambu que rebenta, tornara-se um hábito das festividades. Habituáramo-nos à ideia de que aquelas pequenas explosões não só acrescentavam festa à festa como, além do mais, afastavam todos os demónios, garantindo assim um novo ano pleno de proventos e alegrias. Anos mais tarde, e lá estava eu novamente, os alquimistas tinham acrescentado novos ingredientes à receita inicial, enxofre, nitrato de potássio, não sei, e criado o Huo Yao, como quem diz droga do fogo, aumentando as potencialidades das pequenas canas exponencialmente. Aguardávamos os rebentamentos e dançávamos de alegria. Nessa altura, eu encontrava-me na corte imperial. As festividades maiores não tinham sido ainda permitidas à populaça. Pouco faltava para que alguém criasse a pólvora e, com ela, os primeiros foguetes.
Encontrava-me agora em Veneza, em finais do século XIII. Marco Polo, se existiu, e partamos do princípio que sim, como quando pensamos em Shakespeare ou Homero, trazia da sua longa jornada ao Oriente muito mais do que as massas que os italianos decidiram nacionalizar. Com ele, vinham também a pólvora e os inovadores foguetes. Pouco mais tarde, já na Renascença, aprendêramos a controlar a pólvora de modo mais eficaz e utilizámo-la no que chamávamos o Dragão, uma moldura de madeira coberta com papier maché que soltava fogo pela boca. Os ohs e os ahs eram naturais, frequentes e seguidos de inúmeros aplausos. O espetáculo mantinha-se, no entanto, basicamente nas mãos da realeza, pelo que eu, que começara como um camponês, continuava então a manter algum tipo de posição inútil na corte. Na verdade, só durante o século XVIII, em Inglaterra, o fogo de artifício se tornou popular e parte integrante das manifestações gerais. Nessa altura, já podia deslocar-me pelas ruas, fazendo parte de todos, e extasiar-me com as demonstrações pirotécnicas que passaram a marcar certas celebrações. Mas, como tudo o que ocorre antes da próxima grande coisa, a pirotecnia era pobre e limitada apenas a tons de laranja e branco. Aquele laranja e branco faziam-nos tremer de excitação e alegria. Só na primeira metade do século XIX, no sul de Itália, os pirotécnicos foram capazes de aperfeiçoar os fogos, acrescentando-lhes, enfim, novos tons. E o espetáculo que finalmente se acrescia dos verdes, vermelhos, azuis e amarelos, sobejamente mais profundos e brilhantes, deixou-me boquiaberto e aproximou-me dos tempos atuais.
Revi-me, então, junto ao rio, anos atrás, com o pequeno Ricardo abraçado a mim, entre uma gargalhada e um susto, diante dos intensos rebentamentos multicoloridos que tombavam de pontes, ascendiam de pequenos barcos e tocavam o topo dos céus, desfeitos e liquefeitos em cores e formas múltiplas e talvez mais variadas do que o próprio universo, caindo, por vezes, sobre as nossas cabeças como cabeleiras de anjos. Nessa altura, Ricardo, já só ria às gargalhadas, passado o susto inicial da surpresa, mantendo sempre o seu abraço apertado que quase me pareceu sentir ainda num arrepio e pedia mais quando os últimos e mais espetaculares fogos se desvaneciam e as pessoas se começavam a afastar. Ricardo deu-me um beijo e exclamou: “Adoro-te!”. Que alegria tão inexplicável por vãs palavras, tão seguida daquela tristeza escuríssima que marca os momentos de solidão mais profunda.
Reabri os olhos. Em meu redor, os veraneantes ruidosos e as suas gargalhadas e assertividades continuavam impossíveis de ignorar. Mas eu estava totalmente só.
Afastei o fino, já defunto, para o ponto mais longínquo da mesa. Peguei na cigarrilha esquecida e acendia-a. Tirei duas ou três passas e apaguei-a teimosamente contra o cinzeiro, mais enjoado do mundo que do fumo. Vi, então, um mosquito que ziguezagueava sobre o tampo e, com a ponta do dedo indicador, sem hesitação, esmaguei-o como acabara de esmagar a cigarrilha. Pensei… Os mosquitos terão alma? Alguém terá alma? Era verdade que o mosquito não tinha culpa de ser mosquito. Mas será que alguém tinha culpa de ser quem era? Afastei a dúvida com um leve abanar de cabeça impercetível. Com certeza. Cada um era responsável pelos seus atos e pela compreensão das suas motivações, ou assim achei. Não me sentia com vontade de embarcar em teorias sociológicas que sempre favorecem os bandidos e ignoram os desprotegidos. Alguém era verdadeiramente responsável em último caso? Todos. Os teóricos mais que todos, provavelmente. E os políticos. E os financeiros. E as multidões entusiasmadas. E também eu, claro, mas isso não me incomodou particularmente.

Durante o caminho de regresso em tons acinzentados, pensei. Muito. Deveria ter tido mais cuidado quando o meu filho ia a festas? Quando ia a concertos? Quando ia a festivais? Deveria ter-me mantido em permanente contacto com os professores? Acima de tudo, muito acima de tudo, deveria eu ter estado mais presente e ter conversado com ele numa base menos superficial e mais regular? Complexos de culpa não levam ninguém a lado algum, mas tornam-se, de algum modo, profundamente humanos e inevitáveis. E, em todo o caso, ainda me considerava humano, talvez até mais humano do que alguma vez fora. Não sei, dependeria de quem me avaliasse. Não é verdade que os humanos têm essa tendência inelutável, com o direito que ninguém lhes deu e a finalidade que não existe em termos práticos, de se avaliarem mútua e continuadamente?
Entrei inesperadamente no meu atelier onde, para minha vaga satisfação, todos trabalhavam e ninguém tinha saído para um café e cumprimentei cada um dos meus colaboradores efusivamente. Provavelmente, surpreendi-os. Sobretudo, porque me fiz acompanhar da oferta de uma flor vermelha, não sou especialista em nomes de flores, a cada um. Surripiara-as junto ao muro de uma das vivendas, na pequena avenida junto à praia. Como ninguém notou, ninguém me achou ladrão. Não passei de um pequeno malandro bem-intencionado. A nossa nova estagiária, Eunice, pareceu-me particularmente surpreendida.
Contrariamente ao que sucedera no decurso de quase um ano, deixei-me por lá ficar, passei por todas as secretárias, todos os computadores, todos os projetos, convidei o grupo para almoçar, continuei lá e enchi a casa de opiniões e contributos. Os que de há muito me conheciam devem ter pensado “finalmente, de volta!”. E isso, penso, deve tê-los alegrado. Independentemente da posição de cada um, criam-se laços ao longo do tempo. Quando, ao fim da tarde, saímos e nos despedimos com um falso até amanhã, não pude deixar de olhar para a fachada com um toque de nostalgia.

           
Dirigi-me, seguidamente e de surpresa, a casa da minha irmã. Nem sabia se por lá estariam, ela e o marido. Mas estavam e pareceram genuinamente felizes por me rever.
- Ficas para jantar? Não estava a contar, mas é claro que dá para todos. – convidou Joana.
A minha ideia era diferente.
- Na verdade…, - disse, -… vinha convidar-vos para jantar fora. Gostaria muito de vos levar a um dos melhores restaurantes da cidade. Considerem isso um agradecimento, pequeno mas sincero, pelo apoio que sempre me deram nos piores momentos.
- Oh, não vale a pena. Miguel, ficamos muito bem, os três, aqui em casa. Mais confortáveis e mais à vontade. Obrigada, mas não há mesmo necessidade.
Tive que insistir um pouco, mas fazia questão, sobretudo porque era assim que o planeara.
Graças à minha persistência, jantámos um jantar de reis. Animado. Perfeito. E, chegada a hora do café e de um digestivo que Joana declinou mas que Mário, já bastante alegre do vinho e da conversa, aceitou de bom grado, como um mestre prestidigitador, retirei do bolso o meu truque final. Um anel de ouro branco, recoberto de pequenos diamantes, para a minha irmã e uma belíssima Montblanc, também em ouro incrustado, para o marido. Notei, satisfeito, a surpresa nos seus olhares enquanto desembrulhavam as cuidadas embalagens. Por um lado, não sabiam como aceitar, por outro, não faziam ideia de como recusar. Em todo o caso, a recusa teria sido de mau tom, independentemente da proximidade entre nós. Por instantes, ficaram mudos.
- Mas o que é que te deu? – interrogou, enfim, Joana entre um tom falsamente zangado e um certo deslumbramento – Isto é o tipo de coisa que se oferece a uma noiva. Sinceramente, estou sem palavras. Sem palavras, mesmo. Tu és louco!
- Miguel, … - acrescentou Mário - … não sei o que dizer. A caneta é fantástica e… não sei o que dizer! Não fiz nada para merecer isto. Nem sequer é o meu aniversário!
- Não se preocupem. Eu posso. E quero. Faço questão, certo? Muito obrigado por tudo o que fizeram por mim. – respondi, muito simplesmente, com um sorriso.
E completei:
- Os meus dias piores estão basicamente mortos e enterrados.
No final, deixei uma gorjeta de 50 euros ao empregado e diverti-me a observar a estupefação estampada nos rostos de todos. Ainda recebi um “extremamente grato” acompanhado de uma pequena vénia, mas nem Joana, nem Mário comentaram.

7.1.19

Ricardo - capítulos XX e XXI


XX

            A primavera avançava, num misto de tons invernais e mornidões ocasionais, e o fatídico verão aproximava-se. O Luís recuperara miraculosamente da sua aventura pelas bases de coca e pelo sono eterno, the long sleep, que abeirara, aparentemente encontrara trabalho de monta numa empresa conhecida e já ninguém pensava muito nisso. Uma vez mais, aterrara espantosamente de pé, como os gatos e as suas sete vidas, nove para os ingleses que têm gatos aparentemente mais robustos. Os pensamentos pareciam rodear-me exclusivamente a mim, como um imenso tornado que arrastava toda a minha vida pelos ares. E quem o sabia senão eu? Regressei à praia das minhas recordações num dia ensolarado que alguns banhistas mais afoitos, bem distribuídos pelo areal, tomavam já por plena época estival.
            Descalcei-me junto à amurada, segui em linha reta como alguém que pretende naufragar de forma absolutamente consciente e caminhei paralelo ao oceano, ao longo da ondulação gélida que me chegava aos calcanhares. De algum modo, sabia-me bem porque quase me despertava. Segui, pensando e guardando os pensamentos para mim. Tinha vindo a tornar-me um especialista na matéria.
            A polícia não tinha conseguido ligar os réus de que João me falara a todos os acontecimentos, parecia haver lacunas como grandes lagos e buracos tipo queijo suíço e, ainda assim, tinham julgamento marcado. Interessante… Pessoalmente, tinha decidido deixar os pequenos dealers à solta e isso, provavelmente, baralharia ainda mais as cartas cuja sequência só eu conhecia. Sim, sentia uma espécie de pequena dormência que me empurrava na sua direção, mas sempre fora suficientemente forte para resistir às tentações e como alguém um dia dissera: Just say no. Que piada!
            O sol ia enfraquecendo e decaindo no céu pintalgado de escassas nuvens esguias. Era um céu bonito e vibrava sobre o planeta, quase escondendo eficazmente toda a maldade, toda a podridão e todos os segredos inconfessados sob o seu manto de prestidigitação.
            Fixei o horizonte por instantes e continuei a caminhar. Visualizei-me, eu e Ricardo de mão dada, os dois sentados na areia. Era um dia assim e muitos outros dias diferentes. Eu inventava histórias instantâneas e ele escutava extasiado, boquiaberto. Eram aventuras repletas de bons e maus, armadilhas imprevisíveis, feitos sobre-humanos, cavernas e laboratórios escondidos sob o solo, soldados cobertos por máscaras poderosas, monstros que lançavam bolas de fogo. Ricardo ria, abraçava-se-me vigorosamente e pedia mais. Depois, recordei a noite em que, já mais crescido, regressara de uma festa de carnaval e, ao entrar, quarto dentro, vomitara várias vezes, numa sequência quase matemática, antes de se atirar para cima do edredão. “Pelo menos, servir-lhe-á de lição. De certeza”, racionalizara eu na altura. Mais do que provavelmente, enganara-me.
            O sol escondia-se, agora, no fundo do oceano, barrando-o inteiro de um supra arco-íris mirabolante e fiquei paralisado, em pé, a olhá-lo. Subitamente, todas as recordações se me varreram e, com elas, o próprio pensamento, transmutado em puro instinto. Era um mar bonito sob um céu bonito.
            Quando, enfim, decidi que seria hora de partir, voltei-me de novo para trás, numa derradeira contemplação, e assisti a um espetáculo tão real que me doeu como doem, por vezes, certos filmes a que assistimos, pedaços de scripts em que sabemos que tudo é a fingir…
            À frente, na raia da maré, um velho muito enrugado arrastava-se, curvado e apoiado a uma bengala, lento, lento, como alguém que se recusa a morrer antes, pelo menos, de um último pôr-do-sol num dia bonito, antes da noite cerrada. Logo atrás, um jovem correu, deu um perfeito salto mortal e aterrou de pé na areia húmida, saudado pelos gritos e aplausos dos companheiros que seguiam um pouco atrás. O homem velho não pareceu aperceber-se da proeza do jovem, do mesmo modo que o jovem não aparentou dar-se conta da presença do homem velho.
            Na distância, uma gaivota mergulhou, regressou com um peixe na boca, planou num círculo e soltou um estridente guincho de vitória.





XXI

            O dia aproximava-se…

            Certa manhã, uma manhã ventosa, tinha consulta para uma limpeza no dentista e caminhava apressadamente pelas ruas, preocupado com as horas, se bem que consciente de que é um facto da vida que os dentistas nos deixam sempre à espera.
            Foi ao virar de uma esquina que dei de caras com a cena… Uma carrinha do INEM, a polícia, a fita plástica que impede a passagem e a curiosidade excessiva dos transeuntes e, bem no centro, junto a umas pequenas galerias comerciais, um corpo amortalhado sob um pano branco. Alguém, descuidado ou dono de um sentido de humor macabro, permitira que uma mão de cera gasta extravasasse da mortalha para o passeio de cimento onde repousava intocada. Uma mulher mais comunicativa, tendo talvez notado a minha inexpressão estática, apressou-se a colocar-me ao corrente dos factos. A morta tinha dito à filha que ia até ao quarto ler um pouco. Feito isso, lançara-se da varanda do sexto andar e aterrara como um saco de batatas na calçada, quase atingindo um peão inocente no caminho. Aparentemente, ainda uma semana antes um homem se atirara de um nono andar, não muito longe dali. Trágico, sim, concordei, já mentalmente distante, enquanto a minha interlocutora continuava a tecer considerações. A mulher da mortalha já não se podia importar. Senti um desejo, não sei se de choque, se de sadismo menor ou de outra coisa qualquer, de comunicar a ocorrência à minha irmã e teclei o número no meu telemóvel. Curiosamente, não foi Joana a atender e sim Mário.
            - A Joana foi fazer umas compras e eu fiquei a tomar conta da casa. – riu.
            Contei-lhe a história. Seria mais natural que Mário, por ser jornalista de profissão, estivesse algures a cobrir uma notícia repetida, mas não foi.
            - Isto está pior do que as pessoas imaginam. Sabes que mesmo nós, na comunicação social, somos pressionados a não noticiar o que tem vindo a acontecer para que outras pessoas não sejam incentivadas a tomar o mesmo caminho…
            - Desculpa, o que tem vindo a acontecer? Qual caminho? – perguntei, meio confundido.
            - É natural que não saibas. Mas, basicamente, não passa um dia sem que alguém se atire do cimo das pontes. É muito mau. Ultimamente, o número de suicídios tem sido enorme. – pausou - Olha, quando é que queres vir cá jantar ou, mais que não seja, beber um copo? Esqueceste-te de nós?
            Quando desliguei, depois de um último olhar à suicida aparentemente pouco original, enquanto passava ao lado das barreiras e dos presentes que se atarefavam ou a trabalhar ou a comentar, decidi que não tinha que ir à consulta. No fim de contas, para que é que precisava de uma limpeza dentária? Nem me passou pela cabeça avisar que ia faltar. Não seria necessário.

            Embora nunca me tenha considerado católico, o caminho levou-me à entrada de uma velha igreja que, miraculosamente, ou misteriosamente, como os religiosos tanto gostam de considerar, à falta de explicações mais concretas para as coisas da vida, reais ou inventadas, tinha as largas portas de madeira abertas aos crentes.
            Entrei como entraria um fiel. Ainda ninguém inventara uma máquina que lesse pensamentos, convicções e intuições e a igreja, vazia no interior, parecia pouco precisada de barrar o caminho a quem quer que fosse. Se fosse um repórter, um arquiteto naquele momento efetivamente interessado em patrimónios ou um determinado tipo de escritor, saberia descrever os tetos, os chãos, as paredes. Na verdade, só recordo que era um local fresco, silencioso e mergulhado numa certa penumbra. Espreitei à esquerda, não longe de um São Sebastião cravado de flechas e de um Jesus Cristo de coração nas mãos, parece que afinal recordo algo mais, e vi o confessionário. Interroguei-me se estaria alguém no interior e senti um impulso nada frequente em mim, que não me confessava desde os tempos da escola primária, quando nos empurravam literalmente para a confissão pascal. Quando dei por mim, estava sentado junto a um cubículo onde efetivamente se encontrava um padre.
            - Padre, desejo confessar-me. – disse, numa voz sumida.
            - Sim, meu irmão. O que o traz por cá?
            - Sou um assassino.
Pausa.
- Perdão?
- Sou um assassino.
Nova pausa.
- Bom, o que é quer dizer com isso? O que fez?
- Quero dizer precisamente isso: que sou um assassino. Mato pessoas. Bom, pessoas que considero animais. Não é que esteja bem matar animais, mas acho que há certos animais que vivem numa espécie de submundo dos animais.
O padre disfarçou o choque e interrogou:
- Com certeza que quer falar mais sobre isso…
- Com certeza.
- Então, diga…
- Já ouviu falar no caso dos dealers que aparecem mortos com uma injeção de ar nas veias…
- O que é um dealer?
- Um pusher. Um vendedor de droga. Enfim, ele mesmo um assassino.
O padre deve ter ficado confuso. Pode talvez ter imaginado que eu era um daqueles falsos culpados que se autoacusam sempre que há um crime mais mediático.
- Sim, já sei. Eu acompanho as notícias. Mas, note, a polícia já apanhou os culpados. Tratou-se de lutas entre malfeitores. Não lê as notícias?
- Há anos que nem por isso. Vou vendo alguns noticiários na televisão. Então, o padre conclui que eu devo ser uma espécie de maluquinho cheio de algum desejo de autopunição ou reconhecimento?
O padre voltou a pausar. Escutei-lhe um suspiro.
- E tem provas do que diz?
- Se eu tenho provas? Claro. Mas mais ninguém as tem. Nem vai ter.
- É que se realmente for culpado do que afirma, isso é muito grave.
- Tão grave como condenar Job a uma vida de miséria por causa de uma aposta ou capar uma desgraçada duma figueira porque não dá figos?
- Parece-me que está a entrar em áreas que não compreende.
- E o padre compreende? Explique-me, então, porque eu sempre tive vontade, para não dizer necessidade, de entender essas histórias.
- Bom… - prosseguiu o padre -…, acho que nos estamos a desviar do assunto principal. Dizia, então, que tem provas de ser o assassino…
- Sim, mas não me considero um assassino.
- Não está a fazer sentido. Começou por dizer que era um assassino.
- Isso foi para simplificar. O facto é que se matei quem matei e mataria muitos mais da mesma laia é porque merecem. Se houvesse muita gente como eu no mundo, muita mais poderia ser poupada.
- Pode ser. Mas também sabe que um dos Mandamentos é “Não Matarás”…
- Nunca matou uma melga?
- Sim, mas uma melga não é uma pessoa.
- E essas pessoas também não são pessoas.
- Se o que diz é verdade, não tem perdão aos olhos de Deus. Por piores que possa considerar os indivíduos que matou. Ou os que mataria. Ou, Deus sabe, os que matará.
- Mas isso é-me completamente indiferente, padre.
- É-lhe completamente indiferente? Então que veio cá fazer?
- Não me vim gabar de nada. Vim apenas falar de mim. Do que não posso contar a mais ninguém. Um psiquiatra tem obrigação de sigilo mas custa dinheiro. Um padre não custa dinheiro, tem obrigação de sigilo e não me procura internar ou, pelo menos, fazer engolir comprimidos. Além disso, aconteceu passar à beira de uma igreja. E foi assim. O padre já percebeu que não pode contar a absolutamente ninguém que esteve a falar com o verdadeiro assassino dos dealers, certo?
Ponderou largos instantes e retorquiu:
- É verdade. Mas também não lhe posso conceder a absolvição. Que Deus tenha piedade de si…
- Se existir, há de ter. Ou não. Deus é uma personagem muito complicada. Um bom resto de tarde, padre.
Ergui-me e saí, reto no meu passo, tal como entrara. À saída, nenhum raio me atingiu. E não me preocupei muito por ter causado um embaraço ao padre… No fundo, era apenas uma pessoa e, se não tivesse abraçado a religião, quem sabe se não poderia dedicar-se à venda de droga a adolescentes imaturos e a outros, precocemente envelhecidos, com cara de fruto ressequido, cabeça de água mole e veias a borbulhar doença?

1.1.19

Ricardo - capítulos XVIII e XIX


XVIII

            A raiva não dura muito e a calma ou, pelo menos, alguma calma, substitui-a. Encomendei uma pizza, desliguei os telefones, refastelei-me no sofá frente à TV e zapei o mais que pude. Incrível que quando basicamente não havia canais e os mesmos se desligavam muito cedo ao som do hino nacional parecia haver programação. Agora, nada se revelava satisfatório. Sinal dos tempos e da sociedade de consumo no seu melhor, pensei. A dita sociedade tinha, mais que não fosse, a virtualidade de criar e manter postos de trabalho, mesmo se pagos a 500 euros mensais ou deslocalizados para os confins do universo. De outra forma, haveria mais gente a cavar batatas, a embebedar-se nas tascas locais ao som do nosso restrito calão exclamativo, enquanto jogavam suecas infindáveis com baralhos sebentos, e a matar conterrâneos à sacholada por um rego de água ou a envenenar o cão do vizinho. Suponho que a morte se tenha tornado mais lenta e o veneno tenha extravasado dos cães de forma subtil…
            Nunca fui muito dado a misticismos mas, talvez por algum cansaço, acabei no canal New Page 3, onde se iniciava um documentário sobre experiências de pós-morte, realizado de acordo com os clichés habituais das imagens diluídas e da música dramática. Espapaçado como me sentia, assisti distraidamente a todas as narrativas de breves encontros com espíritos guardiães, túneis de luz, visualizações flutuantes de salas de operações, conversas com entes queridos e, inclusive, as ocasionais visões de santos e do próprio Jesus Cristo no seu reino rutilante a emanar mensagens falhas de originalidade. Recordei-me de um velho conhecido, um médico convictamente ateu, que tinha sido dado como morto durante alguns minutos em resultado de um anestesista de mão pesada numa operação relativamente simples e que, seguidamente, ressuscitara. Tinha-o sondado, com a curiosidade natural que uma coisa dessas desperta. “A escuridão. O vazio. O nada. Um vácuo total”, explicara-me, numa atitude sisuda e quase monossilábica. Algo não batia certo face à reportagem a que acabara de assistir. Algo muito pouco reconfortante porque, instintiva ou culturalmente, ou ambos, todos gostaríamos de gozar de algum tipo de eternidade confortável. A campainha soou com a pizza, trazendo-me instantaneamente de regresso ao mundo material. No exterior, escurecera e o entregador parecia sofrer com o vento cru da noite. Como, por vezes, se oferece uma mini a alguém que nos presta um serviço, agradeci-lhe com uma moeda de euro e despachei-o. Estava de volta ao meu esconderijo subterrâneo onde não queria que me incomodassem. Desliguei o televisor, sentei-me numa mesinha e comi metade da pizza por mera obrigação.
Nessa noite tinha algo a fazer. Antes de tudo, entretanto, cedi ao impulso de, uma vez mais, visitar o quarto que para sempre pertenceria a Ricardo, o quarto que continuaria a existir algures, mesmo muito depois de a casa ter sido demolida, várias outras construídas no local, nem que fosse um mero parque de estacionamento, um banco ou um supermercado, quando as pessoas pensassem cientificamente no nosso tempo como um tempo de homens-macacos. Naturalmente, nada tinha sido mexido e tudo estava no lugar. Nenhum ser etéreo descera de lado algum para me deixar uma mensagem mística. E nenhum ente das profundezas subira do seu algures para brincar aos Poltergeists. Sentei-me na borda da cama e fechei os olhos por instantes.
Estávamos numa esplanada, num dia ensombrado por ocasionais gotas de chuva fina que não se atrevia a cair inteira ou sequer continuadamente, eu e Ricardo adolescente. Queixava-se que a minha geração lhes – e esse lhes continha a eterna ilusão do novo e de como o novo sempre é melhor que o velho – tinha deixado um mundo desgraçado, sem oportunidades, que os jovens eram obrigados a emigrar à força, enfim, tínhamos dado cabo de tudo sem dó nem piedade.
- Bom, eu, em particular, não deixei mundo nenhum desses a ninguém. – retorquira.
- Sim, não estou a dizer que foste tu. Foi a tua geração.
- Então, penso que cabe à tua consertar as coisas, não achas?
- Eu não vou fazer nada.
- Não vais fazer nada? Isso torna-te ainda mais responsável do que qualquer geração anterior.
- Não disse que não ia trabalhar. – riu-se.
- Nesse caso, vais contribuir. Não tens que ser presidente da República.
Claro que o meu Ricardo, como todos os Ricardos de todos os tempos, se esquecia que todas as gerações padecem dos mesmos males e lançam as mesmas acusações. Lembrei-me de quando Frank Zappa garantiu que o poder iria passar para as mãos dos jovens. Grande Zappa! Tinha sido novo antes de morrer. Aquilo de que Ricardo também se esquecia era que a minha geração é que lhes tinha trazido os computadores, os jogos, a Internet, os telemóveis, os multicanais de TV, as músicas de todos os géneros, as modas exigentes e, sobretudo, a liberdade que tanto contrastava com o passado inteiro, nomeadamente a liberdade de expressão que lhe permitia acusar quem lhe apetecesse sem fazer nada no sentido de mudar as coisas e sem levar uma lambada aplaudida pela maioria da sociedade. Acho que a minha geração, sem querer, lhes tinha trazido tudo o que eles pretendiam ou poderiam talvez pretender e que nunca era suficiente, porque pairava sempre um ennui vago mais adiante. Tinha lido algures, num fórum estrageiro que frequentara, uma frase que resumia muita coisa: I am not young enough to know everything. Com um bocadinho de googling descobri que era uma citação de Oscar Wilde. Teria preferido que não tivesse sido uma citação, mas vive-se com o que há. De certa forma, era curioso e divertido. De certo modo era preocupante. Provavelmente, deveria ter-me preocupado mais. Mas também não sei bem o que poderia ter feito para tornar Ricardo adolescente, tão cheio de si, num Ricardo não adolescente. O meu nome de batismo não era Tempo.
Reabri os olhos, ergui-me e quedei-me, por momentos, a olhar para a cama onde Ricardo certamente tantas vezes sonhara, do mesmo modo como, ultimamente, eu me vira incapacitado de sonhar. Subitamente, senti-me vazio, mais vazio ainda do que me sentia normalmente. Num gesto instintivo, agarrei furiosamente a almofada branca de Ricardo e lancei-a contra a parede oposta, com toda a ira que me jorrava das mais ocultas entranhas. Logo de seguida, fui atingido por um sentimento de choque pelo que acabara de fazer. Como um autómato, dei dois, três passos largos, apanhei o pedaço de tecido frio e recoloquei-o cuidadosamente no seu lugar, na cama. Baixei-me e beijei a almofada como já antes fizera.
- Desculpa, meu filho. Dorme bem.

Nessa noite tinha algo a fazer. Já topara o indivíduo. Frequentava um pequeno café onde muitos jovens se reuniam ou por onde simplesmente passavam. Trazia o cabelo grisalho a tocar os ombros, um bigode descaído e vestia invariavelmente couro preto, ou talvez uma boa imitação de cabedal, que lhe roçava sapatilhas de marca. Parecia um tipo bem-disposto. No entanto, eu já o topara. Vesti a minha gabardina de bolsos fundos, cheios de tudo o que precisava, que não era muito, salvo uma ponta e mola que decidira efetivamente usar em caso de necessidade absoluta. Ninguém deve andar com uma navalha se não tiver a certeza de ser capaz de a usar. Até agora, não fora mesmo nada necessária, e ainda bem, porque, nesse caso, poderia deitar tudo a perder. Estacionei a dois quarteirões do café e fui fazer a minha ronda. Ele lá estava, numa mesa, rodeado de pessoas, talvez amigas, ou aliadas ou simplesmente conhecidas. O tempo arrastou-se até que chegou a hora do encerramento. Por essa altura, já dera algumas voltas pelas imediações, sem nunca me distrair, como o sniper que vigia pacientemente um alvo que, na sua inocência ou na sua estupidez, nada teme. Esperava que saísse sozinho, mas não tinha a certeza. Poderia estar a perder o meu tempo e simplesmente a candidatar-me a uma gripe na noite fria que me causava pele de galinha. Não, não era apenas a noite. Era, sobretudo, a perspetiva. Felizmente, o homem era um solitário, por mais que tivesse a mesa rodeada de gente. Não se demorou sequer a fumar um cigarro ou a conversar à entrada do café. Vi-o afastar-se da entrada da rua e segui-o instintivamente por uma rua paralela. Fui dar com ele mais adiante. Não morava longe e eu já lhe conhecia o prédio, um velho prédio com pequenos azulejos, talvez do início dos anos setenta. Com toda a calma que só as certezas permitem, no momento em que voltava a chave distraidamente, acerquei-me dele e perguntei as horas. A porta já estava entreaberta e, no preciso momento em que olhou para o relógio de pulso, cravei-lhe o tazer na nuca e vi-o estremecer e desfalecer diante de mim na rua vazia antes de o ter arrastado para o interior, para o vau por baixo da escadaria. Contive-me para não soltar uma gargalhada que alarmasse toda a vizinhança. Muito rapidamente, arregacei-lhe a manga esquerda e apertei-lhe fortemente um garrote acima do cotovelo. Certifiquei-me de que tinha as mãos protegidas pelas minhas luvas de latex. Sim, tudo corria perfeitamente. Retirei uma pequena seringa do bolso e cravei-lhe lentamente a agulha numa veia que lhe corria pela dobra do braço. Puxei o êmbolo lentamente e senti-me, uma vez mais, surpreendido pelo vermelho vivo que, como um rio calmo de vida, fluiu. Então, empurrei o êmbolo metodicamente e enchi-lhe a veia de ar. Tive pena de não haver mais ar na seringa, teria gostado de prolongar o momento. Senti um prazer indescritível, um prazer justiceiro, como se tivesse tomado o lugar de Deus porque Deus não existia e alguém tinha que o fazer. Vi-o tremer. Espumar. Sorri muito largamente.
Inesperadamente, ouvi uma porta abrir-se num andar de cima. O coração invadiu-me a boca. Mantive-me quieto, na minha toca momentânea, como um pequeno rato acossado.
- Não estou para aturar mais tretas destas! Vou dar uma volta e vê se pensas bem no que queres! – era uma voz de homem.
- Se sais, não precisas de voltar, ouviste? – era uma voz de mulher.
Ficaram a discutir à entrada da porta durante minutos que me pareceram horas. Naquele momento, não tinha a certeza daquilo para que estava preparado. Não ia matar um inocente. Também não me ia deixar apanhar. E o coração parecia querer saltar-me peito fora e subir as escadas para os esbofetear. Por fim, o tom de voz de ambos começou a serenar. Seguidamente, escutei o som da porta que se fechava. Alonguei os sentidos, já de si aguçados pelo perigo, e não escutei passos na escada. Tinham ido terminar a discussão, qualquer que ela fosse, certamente menos importante do que lhes parecera, em casa e, esperei, fazer as pazes com a bênção de quem quer que estivesse habilitado para dispensar bençãos. O coração tombou-me novamente no peito como um pedregulho. Tinha-me sentido momentaneamente tonto e agora, lentamente, ainda que com um sentimento de urgência, recuperava. Respirei fundo e, com a máxima cautela, em perfeito silêncio, pus-me a milhas, deixando para trás, quase esquecido por instantes, o cadáver obscuro do pusher. O mercado é largo e em breve ninguém mais se lembraria dele.



XIX

            Pela manhã, quando me preparava para sair, o telemóvel soou. Era o Lucas e o seu tom de voz denotava um misto de preocupação e espanto. Mesmo se, pensei para com os meus botões num instante muito breve, o que me contava seria de se esperar eventualmente…
            - Miguel?
            - Sim?
            - Sou o Lucas, pá, aconteceu uma coisa muito chata e achei que devia avisar os amigos.
            - Diz. Por acaso, estava quase a sair para o trabalho. Mas fala. Que é que foi?
            - O Luís, pá. Teve um ataque cardíaco e está internado no Hospital de S. Brás da Agonia.
            - O Luís? Bolas, e como é que foi isso?
            - Não sei exatamente, mas estás a par da vida que ele tem levado e, caramba, de repente deu-lhe. Está em coma. Isto é mesmo muito mau.
            - Sim. – concordei laconicamente, quase lhe contando que ainda há relativamente pouco tempo tinha estado com ele, mas contendo-me no último instante para poupar os detalhes que não quis contar.
            - Bom, já sabes. Se o quiseres visitar, sabes onde está. Dá-me uma telefonadela e vamos lá os dois.
            - E achas que vai recuperar? – perguntei.
            - Sei lá. Espero mesmo que sim. Pode ser uma lição de vida. Se recuperar, isto é. Não queria nada ter que assistir ao funeral dele. Ele é porreiro, sabes perfeitamente disso, fazia parte do nosso grupo e perdeu-se um bocado, pronto. Mas continua a ser o Luís e merece o nosso apoio. Ouve, liga-me assim que puderes e vamos lá juntos, ok?
            - Ok. Depois eu ligo. Abraço.
            - Abraço. Liga-me, sim?
            - Claro, já disse que sim. Abraço. – concordei, pleno de indiferença, e perguntei-me porquê. Na verdade, o Luís era uma vítima mais, tal como o meu filho tinha sido uma vítima e como, certamente, havia inúmeras vítimas diárias em diferentes graus, cheios de loucura, sida, hepatite, podridão cavalgante...Porquê a indiferença? Acho que não se explica sem uma boa dose de autoanálise. Porque sim.

            Quando era mais novo, tive um grande amigo com quem partilhava umas ganzas ocasionais, coisa de adolescentes. A certa altura, as coisas, para ele, começaram a ficar pesadas, cada vez mais pesadas. Começou a beber, a beber de tudo, coisas rasca. Experimentou ácidos. Speeds, recordo-me que na altura se usava muito o Lipoperdur ou algo assim. A partir de certa altura, meteu-se na heroína e injetava-se cada vez mais furiosamente. O culminar, apesar do vício da heroína que o ia apunhalando, foi, segundo me contaram, numa viagem de férias que fez com uns amigos que levavam ácidos. “Cuidado, é para meter só um”, tinha avisado um deles. De súbito, viram-no e estava a engolir uma tablete inteira. Acho que os amigos se riam e assustavam simultaneamente enquanto ele o fazia. De regresso, depois de todo um conjunto de reações estranhas, manias de perseguição e ataques de autodefesa delirante, foi internado e dado como esquizofrénico. “De qualquer modo, acabaria por acontecer”, pronunciou um médico. Se bem me recordo. Talvez, não sou médico e não sei. Levou com todo o tipo de neurolépticos e choques elétricos e acabou por sair, decorridas muitas semanas de espera. Procurou forçar-me a fazer-lhe um garrote para se chutar. Recusei-me e ficou furioso, desesperado, tresloucado. Andava como um robô e dizia coisas sem nexo. Ou, como certa vez fez, quando o encontrei na rua, deu-me um forte abraço interminável e disse: “Nunca te esqueças que somos amigos”. Talvez. Não sei, uma vez mais não sou médico, mas diz-se que os esquizofrénicos não têm verdadeira ressonância afetiva. Nunca mais fomos amigos, como os amigos que convivem e partilham coisas, nunca mais o vi e não sei o que foi feito dele. Aliás, apesar de o ter guardado no coração – ou melhor, a recordação de quem fora – sempre preferi não saber.
            Numa noite de verão, quando o verão ainda era verão e ainda éramos tão novos, vem-me a imagem exata dos meus amigos a chegar de carro ao café que já tinha fechado, seriam umas três da manhã?, talvez, não entendo como é que conseguiram conduzir o carro, vinham todos nitidamente a dormir ou como se dormissem, parecia-me que tinham os olhos fechados, aqueles olhos de pupilas muito pequeninas, estacionaram miraculosamente e vieram exibir-se como uma fotocópia daquela personagem do Tintin que enlouqueceu e queria matar os pais, acho que era os pais, e o próprio Tintin, com um sabre. Nessa altura, acho que não me consideravam exatamente amigo porque eu não estava no pó ou no cavalo, por outras palavras, não era fixe, mas o certo é que depois de muito esforço acabaram a não poder tocar numa pinga de álcool ou com os dentes a apodrecer e, depois, largamente postiços, isto para não mencionar os que nunca trabalharam e viveram toda a vida às custas da família até adoecerem de bagaço com cerveja, pneumonia ou tuberculose. Não sei exatamente o que foi feito deles.
            O meu amigo Cristiano, com quem costumava tocar guitarradas noutros tempos, que, certa vez, antes de um São João, me veio contar que ia levar morfina, é só uma piquita, disse, e depois acabou na maior decadência, a levar porrada no meio do passeio por ter roubado um blusão de couro para vender e essas coisas que se fazem, e não tenho a certeza se morreu, o mesmo que certa vez, não sei bem sob o efeito de quê, nos atirou com pedrinhas, a mim e a um colega que vinha comigo, ele vinha com outros e todos estavam muito estranhos, ouvi qualquer coisa, talvez tenha morrido, ou o tipo que assaltou uma farmácia e adormeceu lá dentro, onde a polícia o encontrou de manhã, um artista cheio de veia, perdido. Não sei. Não sei de nada. Sempre me afastei.
            O tipo que certa vez desmaiou, em pleno ar livre, enquanto mandava um chuto de heroína e o sangue ficou a escorrer-lhe da veia, alguém me contou na altura. Aqueles que, no final dos concertos cujo bilhete tinham comprado e a que não tinham assistido, que ficavam a dormir no meio dos vomitados e dos pedaços de vidro quebrado quando já todos estávamos a sair. Vi-os, tipos que mal conhecia e em quem não confiaria também, a preparar a heroína na colher, o limão, aquilo tudo e deixei de saber de tudo. Também ouvi dizer que o Carlos tinha morrido, não sei, nem faço ideia de quê, nem quero saber ou prefiro não querer saber. O André a aparecer absolutamente nervoso e excitado na cave onde passávamos as noites e a fumar uma chinesa, todo transpirado, estupidamente transpirado, a pingar no chão de cimento, finalmente aliviado. O meu amigo de liceu que encontrei numa paragem de autocarro, a coisa mais estúpida que fizera fora experimentar o cavalo, disse, meio desaustinado, tinha a cabeça em água, não se lembrava de mim nem de ninguém e estava uma pilha de nervos à espera do produto. Esqueci-me de tudo. Inclusive das namoradas que por lá passaram, raparigas absolutamente normais e cheias de sonhos, que se dedicaram à prostituição de rua para arranjar dinheiro. Talvez tenham morrido todas e não passem de cadáveres esquecidos. Ou não sei. Segui outro caminho e só fiquei com imagens entrecortadas…

            - Miguel! Miguel, está a ouvir alguma coisa do que eu tenho estado a dizer?
            - Perdão? João, peço desculpa, estava tão longe… Peço mesmo desculpa. Diga lá…
            - Estava a falar dos planos para os terrenos do Bairro do Laranjal. Temos estado a trabalhar nisso e precisávamos que desse uma opinião sobre as ideias que temos criado, são várias.
            - O Bairro do Laranjal? – acordei dos meus pensamentos e recordações e aterrei no atelier com uma força plena de violência de que ninguém se apercebeu – Sim, claro, temos que ver isso. Para quando é que a Câmara está a planear exatamente a implosão?
            - Para o final de setembro. Foi o Miguel que nos transmitiu essa informação. Não se recorda?
            - Sim, claro. Vamos lá ver em que é que temos andado a pensar.
            Todos olharam para mim com alguma estranheza que rapidamente se esvaiu e procedi a examinar os projetos, as ideias, estavam interessantes, enfim, basicamente interessantes. Do meio da minha galáxia, ergui a mente, examinei, estudei, pensei e acrescentei algumas ideias.
            - Na maioria, têm aí ideias muito válidas. Façam apenas mudanças nisto e naquilo, assim e assim, pode ser?
            - Claro. Vamos já tratar disso. Muito obrigado pela ajuda.
            - De nada. É para isso que aqui estou.
            Não tinha exatamente a certeza de onde estava. Sempre tive um certo dom da ubiquidade, ainda que não absolutamente perfeito. Nunca fui Santo António nem me chamaram São Miguel.

            Quando já estava com um pé fora da porta, o João de novo:
            - Miguel?
            Voltei-me para trás, convencido de que alguma informação me teria escapado, pronto a ajudar:
            - Sei que não tem nada a ver, mas viu o noticiário de hoje?
            - O noticiário? Não, porquê?
            - Sabe, aquelas mortes que tem havido na cidade, relacionadas com o tráfico de droga, a polícia já descobriu o culpado.
            Arrepiei-me instintivamente.
            - Não é o culpado, peço desculpa, é os culpados. Aliás, coincidiu com mais um assassínio do género ontem à noite. Em todo o caso, talvez agora se possa andar mais descansado…
            Desarrepiei-me.
            - Mais um? Realmente… Mas, afinal, descobriram os culpados?
            - Sim, parece que tudo teve a ver com problemas entre gangues, aliás era o que se afigurava desde o início. Já prenderam um grupo de tipos. Parece que deixaram rasto daquela vez em que violentaram um desgraçado completamente antes de o matar ou, pior, depois de já estar morto, daquela vez em que se devem ter passado de todo. Não deu para lhes ver a cara, passaram as imagens de quando os encaminhavam para interrogatório, mas todos tapavam a cara. Uma coisa complicada. Mas é como digo, suponho que agora, finalmente, tudo isto possa parar. A cidade não tem sido o que já foi, está mais perigosa. A minha mulher diz-me que não se atreve a sair à noite sozinha.
            - Hmm, ainda bem. Essas coisas não podem passar em branco, senão não sei onde vamos parar. Ainda bem que a polícia faz o seu trabalho. Bom, tenho que ir. Qualquer coisa, liguem-me, combinado? Já sabem.
            - Até logo.
            - Bom trabalho. Até logo.
            Saí. Não sabia se me deveria rir, se chorar, se recear. No fundo, a incompetência e as ideias preconcebidas, pelo menos assim à partida, calhavam-me na perfeição. Mais que não fosse, de momento.